Por Afranio Silva Jardim, via João Lopes no Facebook –
Inicialmente, é preciso deixar bem claro que estou me referindo a uma pequena parcela do Ministério Público, uma das mais importantes instituições de Estado neste século. Pertenci aos quadros do Ministério Público de meu Estado por 31 anos e disso me orgulho muito. Entretanto, um corporativismo extremado faz com que a maioria dos membros do Parquet fique silente diante de alguns exageros persecutórios e até associações de classe hipotequem solidariedade a estas práticas, julgando estar fazendo bem para a instituição …
No início da chamada operação “Lava-Jato”, estive, modestamente, apoiando a atuação dos Procuradores da República e do juiz Sérgio Moro. Pela internet, me correspondia com alguns destes membros do Ministério Público Federal e com este magistrado, embora jamais tratasse do caso concreto. Apenas falávamos de questões teóricas do Direito Processual Penal. Não mais nos comunicamos …
Por tudo isso, custei a aceitar que os acordos de cooperação premiada (delação premiada) estivessem ocorrendo diante de circunstâncias artificialmente criadas. Em outras palavras, que prisões estivessem sendo decretadas com desvio de finalidade. Muitas prisões não estavam sendo decretadas para instrumentalizar e viabilizar a coleta de provas ou evitar a fuga dos indiciados, mas tinham como escopo oculto fragilizar os investigados e constrangê-los a delatar outras pessoas, mormente em se tratando de suspeitos de certa idade. Prisões temporárias são decretadas para interrogar os indiciados, que têm o direito constitucional de ficarem calados. Nestas circunstâncias, ficam temerosos de ter o prazo prorrogado ou ser ela convertida em prisão preventiva. Feita a delação, são os indiciados colocados em prisão domiciliar, com tornozeleiras, conforme prometido ou esperado, malgrado a condenação a penas altíssimas. Desta forma, estas condenações são “um faz de contas”.
Ouvindo o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, em entrevista no programa Roda Vida da TV Cultura, acabei por constatar tal distorção, reconhecida publicamente por ele.
Acho que tudo isto está acontecendo um pouco porque a polícia federal, Ministério Público e Poder Judiciário se irmanaram para o salutar combate à corrupção. Entretanto, não temos aqui o chamado Juizado de Instrução, motivo pelo que o juiz não tem que combater nada, mas sim prestar a jurisdição quando provocado, de forma imparcial e isenta, sem se deixar levar, até inconscientemente, por tendências políticas e ideológicas. Por outro lado, o Ministério Público, pela Constituição Federal, tem por finalidade principal tutelar a ordem jurídica e defender o Estado Democrático de Direito.
Em algumas mensagens anteriores, demonstrei abusos e equívocos técnicos ocorridos na “operação Lava Jato”, como buscas domiciliares genéricas e conduções coercitivas sem prévio descumprimento a anterior intimação, mormente quando o investigado tem direito de não ser interrogado. Se a Constituição Federal outorga ao investigado o direito de ficar calado, o artigo do Cod.Proc.Penal, que autoriza a sua condução coercitiva, não foi por ela recepcionado. Vale dizer, está revogado pela Constituição de 1988.
Houve também vazamentos seletivos, com o fim de jogar a opinião pública contra suspeitos, em detrimento de suas intimidades e dignidade, violando o princípio da presunção de inocência. Por e-mail, manifestei expressamente a minha decepção com tudo isso ao Dr. Sérgio Moro que, gentilmente, me deu suas explicações. Não as julguei satisfatórias. Conversei sobre estas questões com antigos colegas do Ministério Público. Nada obstante, não mais é possível deixar de assumir uma posição clara sobre a distorção que está ocorrendo em nosso sistema processual penal, na qualidade de professor que sou há 37 anos da matéria, seja na graduação, seja no mestrado e nos cursos de doutorado.
Os fins não podem justificar meios incorretos. Como sempre disse, não é valioso punir a qualquer preço. No caso, o preço é muito alto, qual seja, abrir mão de garantias individuais previstas na Constituição Federal e retroceder a um verdadeiro “Estado Policial”, jogando na lata do lixo da história todo o evoluir do processo civilizatório, que nos outorgou a preciosa cultura de uma sociedade democrática.
Não à corrupção. Não a um Ministério Público e a um Poder Judiciário messiânicos e “punitivistas”.
Afranio Silva Jardim, mestre e livre-docente em Direito Processual Penal. Professor Associado da Faculdade de Direito da Uerj (graduação, mestrado e doutorado).