Publicado em Jornal GGN –
‘Embora tenha sido razoavelmente eficaz na busca dos “heréticos” na idade média, sistema parcialmente replicado na Lava Jato cometeu muitas injustiças e, por isso, suas práticas foram neutralizadas nos sistemas ocidentais’
Jornal GGN – As revelações das mensagens trocadas entre o então juiz Sergio Moro e procuradores da operação Lava Jato revelaram mais do que uma estratégia para atacar exclusivamente um partido, mesmo que em princípio, culminando na prisão da sua principal liderança, o ex-presidente Lula. O escândalo da Vaza Jato explicitou a “desigualdade jurídica” corrente no tratamento processual do sistema brasileiro.
Essa é a avaliação do grupo de pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br), coordenados pelo professor Roberto Kant de Lima. Eles assinam o artigo “Vaja-Jato: ilegalidades privilegiadas ou meras rotinas?”, publicado nesta segunda-feira (1) no blog Ciência & Matemática, no jornal O Globo.
“Já há bastante tempo nossas pesquisas detectaram em nosso sistema processual penal não só a seletividade própria do direito penal no mundo capitalista em geral, onde os mais abastados recebem tratamento desigual frente àquele dado aos segmentos menos favorecidos economicamente da população mas, especialmente, desse tratamento desigual estar, no Brasil, definido expressamente em lei e, por isso mesmo, ser naturalizado por parte dos operadores do sistema”, pontuam.
Eles explicam que, os processos penais contemporâneos são formados no sistema de “inquéritos”, que envolvem procedimentos administrativos e judiciais para reconstruir eventos passados. Por isso mesmo, estão sempre sujeitos a controvérsias e a dúvidas.
“Por ser uma reconstituição, seria em princípio totalmente inadequado definir que o resultado desse trabalho refletisse o que o Direito Processual Penal brasileiro contemporâneo define como “verdade real”. No entanto, esta denominação do resultado final torna-se fundamental para colocar nas mãos do juiz e apenas dele a decisão final”, destacam.
O juiz é o ator que deve usar de seu conhecimento e autoridade para examinar as versões necessárias do contraditório, especificamente da lógica do contraditório pelas partes envolvidas no processo: os acusadores e a defesa.
“A lógica do contraditório consiste na obrigação de as versões apresentadas dissentirem infinitamente, para que uma autoridade externa a elas decida qual vence e qual perde”, explicam os pesquisadores. Além disso, o juiz tem a função de analisar as verdades apresentadas pela acusação e defesa para “definir monocraticamente o que foi e o que não foi provado, segundo seu ‘livre convencimento motivado’ a ele assegurado por lei”.
“Assim, mesmo quando defesa e acusação concordam, o juiz pode delas discordar e continuar investigando. Negociações explícitas que resultem em consensos, portanto, não são lógica e formalmente permitidas no Brasil, nem entre as partes, nem entre as partes e o juiz”, destacam os pesquisadores.
Acontece que o modelo vigente processual no Brasil acaba dando margem para críticas da população, que vem de raízes aprofundadas durante os procedimentos religiosos da Inquisição, época em que foi permitido extrair a verdade dos acusados a qualquer custo, inclusive recorrendo à tortura.
O primeiro ponto é que na modalidade de processo vigente no Brasil os atores envolvidos – polícia judiciária (encarregada do inquérito policial) e o Ministério Público não estão, necessariamente alinhados. “[Eles] têm interesses corporativos próprios e podem eventualmente competir entre si”, lembram os pesquisadores.
O sistema ainda conta com os atores que defendem o acusado – Defensoria Pública e Advogados – além da Magistratura, essa última trabalhando na reconstituição dos eventos que motivaram acusação.
“Ora, diferentemente do que ocorre nos crimes comuns, os procedimentos ordinários dos chamados crimes de colarinho branco, muitas vezes de extrema complexidade, costumavam conter em suas diversas fases, mas especialmente nos inquéritos policiais, inúmeras falhas e erros de procedimento, e por isso têm sido a maioria dessas investigações declaradas pelos tribunais superiores totalmente nulas, ou mesmo prescritas”, ressaltam os pesquisadores.
“Esses erros seriam fruto de negociações informais, desatenção, desconhecimento ou mesmo de interpretações controversas da própria lei, que são frequentemente estimuladas pela lógica do contraditório. Esta lógica, inclusive, dificulta, ou mesmo impede, o consenso em decisões colegiadas de segunda instância e nos tribunais superiores, como se pode observar publicamente na transmissão dos julgamentos pela TV Justiça”, completam.
Esses inconvenientes todos apontados – diferentes atores, dificuldade de remontar com fidelidade fatos passados, erros procedimentais – poderiam ser parcialmente neutralizados se todos os agentes da acusação estivessem agindo em sintonia.
“Assim, inicialmente envolvendo o Ministério Público e a Polícia nas chamadas “Forças-Tarefa”, esses procedimentos terminaram por envolver o próprio juiz, que precisa ser consultado para permitir quebras de sigilo e outros procedimentos ainda durante o curso da investigação. Ora, essa cooperação entre essas três corporações seria, inicialmente, estranha ao nosso processo movido pela lógica do contraditório acima descrito, em que o juiz deve formar sua decisão imparcialmente, a partir de versões obrigatoriamente contraditórias a ele apresentadas”, arrematam os pesquisadores.
Diante desse quadro, soma-se a outra característica do sistema jurídico brasileiro já mencionada que é a busca pela suposta “verdade real”, não com o objetivo estabelecer mecanismos de recuperação dos culpados, mas para puni-los e reprimi-los, “herança de uma religiosidade medieval”.
“Indaga-se então se seria justo deixar criminosos livres somente porque não deveria haver cooperação entre as partes? E ao juiz não caberia descobrir a verdade real, a qualquer custo, para punir os culpados e realizar a sua justiça, mesmo quando os indícios tivessem sido ilicitamente apurados?”, continuam os pesquisadores.
“Esse sistema [que] clama pela confissão plena, a “Rainha das Provas” para assegurar a verdade de suas acusações sigilosas, [estão] fundadas em delações também cobertas de sigilo”, pontuam.
“As investigações e a decisão prévias ficam a cargo dos mesmos agentes e os acusados desconhecem as acusações contra eles, que estão registradas por escrito e mantidas sob sigilo. Seus advogados esforçam-se por adivinhá-las, exercitando a lógica do contraditório para desqualificar seus possíveis delatores. Esse sistema religioso difundiu-se e contaminou os processos das justiças leigas, diminuindo garantias de defesa anteriormente existentes, como a acareação entre denunciante e acusado, que tornaria transparente para o acusado as acusações e a identidade do denunciante”, completam os pesquisadores.
Aí está portanto o problema desse modelo inquisitorial (identificado na Lava Jato) que acaba desequilibrando todo o processo judiciário, reforçando a injustiça sobre a parte mais fraca, ou menos articulada.
“Embora certamente tenha sido razoavelmente eficaz na busca dos “heréticos”, este sistema cometeu muitas injustiças e, por isso, suas práticas foram sucessivamente neutralizadas nos sistemas ocidentais, por sistemas de inquérito que privilegiam, nos processos penais, a presunção da inocência e a necessidade de procedimentos explícitos e transparentes para a acusação na construção da verdade judiciária pelas partes adversárias, pois na reconstituição do passado, fundamental no sistema de inquérito, só se pode alegar o que se pode juridicamente provar”, ponderam os pesquisadores.