Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Neste capítulo, Cícero César vai costurando um texto até chegar no ponto de um tecido que dá literatura, música, vida…
Na costura da minha vida / Mais um ponto / No arremate do sorriso mais um nó (Trecho de “Sentimental Eu Fico”, de Renato Teixeira, cantada por Elis Regina).
Calça nova de riscado / Paletó de linho branco / Que até o mês passado / Lá no campo ‘inda era flor (Trecho de Mucuripe, de Belchior e Fagner)
A aranha tece puxando o fio da teia / A ciência da “abeia”, da aranha e a minha / Muita gente desconhece (Trecho de “Na Asa do Vento”, de João do Vale)
Meu caro Washington, o texto de hoje é feito de encomenda. Um amigo me pediu para que eu relatasse uma história a respeito de roupas ocorrida com ele. Como não posso me dar ao luxo de recusar pedidos, fiz o que pude com os panos e novelos de linha à disposição. Eis os retalhos que formam a colcha. No mais, rogo aos deuses dos alfaiates para que saia um texto alinhavado que agrade aos nossos leitores, que entendem do riscado.
COSTURA, DIGO, CULTURA
Um texto é tecido de palavras, desde os mais bem elaborados, de fina estampa, até os mais mal-ajambrados. Nas artes plásticas, há o caso de Arthur Bispo do Rosário, que, dizem, desfiava os lençóis do sanatório para obter a linha de que tanto precisava para suas criações. A urgência da expressão era maior que o reino da necessidade. Descobria-se para que nós o descobríssemos. Na prosa, há o caso de “Um apólogo”, conto de Machado de Assis no qual uma linha e uma agulha discutem qual das duas é a mais importante. Na poesia, há o caso de “Tecendo a manhã”, poema de João Cabral de Melo Neto que reproduz a estrutura da máquina de tear. E, na canção, arremato com “Três apitos” de Noel Rosa e “Baby”, de Caetano Veloso. E tem aquela que o pessoal do grande encontro cantava, aquela do sujeito preguiçoso.
KALIL M. GEBARA: “NINGUÉM SEGURA O BRASIL!”
Para a minha geração o nome de Kalil M. Gebara se associa a uma propaganda televisiva de uma loja de tecidos. Feita pelo próprio Kalil, aliás, que dizia orgulhoso seu bordão: “Ninguém, ninguém segura o Kalil!” Era coisa muito eficiente, ficou pregada na memória, talvez não só na minha. Pelo menos, no Rio de Janeiro.
Pensando no Kalil, eu não fui me casar justamente com a Layla, que é descendente de libaneses? A história deles dá muito pano para a manga, meu caro, mas tentarei resumir aqui: todos os da primeira geração estão ligados indelevelmente ao comércio de roupas. Abriram lojas nos calçadões, nas galerias, nos shoppings, fizeram feiras, trabalharam duro, ganharam e perderam dinheiro enquanto o Brasil se modernizava.
Até hoje eles se reúnem em almoços de família. Até hoje viajam a São Paulo para renovar as mercadorias das lojas. Olhando bem, em dia de festas ou de missa, encontraremos velhos senhores vestindo calça social e camisa de botão por dentro, em elegância ímpar. Alguns outros se vestirão mais despojadamente, em look casual ou seguindo a linha sportswear. Não posso deixar de falar das senhorinhas, cada vez mais raras, em seus graciosos vestidinhos estampados.
Por quê? É o tal do espírito das roupas. A gente é o que veste ou quase. Meu pai, que não era árabe, também se vestia como se fosse da família do Paulinho da Viola. Na beca, como se dizia.
NOVA AMÉRICA E FÁBRICA BANGU
Entre o final do século XX e início do XXI, duas grandes fábricas de tecidos do Rio de Janeiro viraram shopping centers: o Shopping Nova América, que fica em Del Castilho e o Shopping Bangu, que, fazendo jus ao nome, fica em Bangu.
Em uma leitura apressada, posso dizer que só lhe restaram as cascas, mas não deixo de considerar bonita a racionalidade fabril da arquitetura. Salvo erro, ainda é possível ver nos dois shoppings as fotos em preto e branco de como eram as fábricas quando ainda funcionavam. Muitas das ruas em Bangu homenageiam os trabalhadores da fábrica, como é o caso, por exemplo, da Rua dos Limadores. Fico devendo a conferência do total de ruas.
A AVÓ DO MISTER M
Por vezes, as lembranças nos espetam o dedo. Ao observar a moda atual, Mister M, meu amigo, que é originalmente de Bangu, se recordou das proezas da avó, exímia costureira. Disse-me que certa vez ela pegou a calça surrada do netinho e, sem que ele soubesse, lhe fez um impecável remendo. Com tal feito, lá se foi a estética punk que o netinho sonhava para a calça.
Expectativa: Jão Torpe do trailer do Rato. Realidade: Jeca Tatu de festa de São João.
A senhorinha teria muita dificuldade em entender que a moda atual é feita de grandes rasgos nas calças, indo desde um sutil desfiado à altura das coxas até grandes rombos à altura dos joelhos. Não há nada de estética punk do tipo faça-você-mesmo-que-se-dane-a-família-real, mas as compras podem ser parceladas no cartão em até doze vezes e os vendedores não se furtarão em levar a sacola de compras até a porta da loja e desejar “Boa sorte” ao incauto comprador.
Não dá nem para falar em “punk de boutique” porque muito provavelmente poucos se darão conta de que “boutique” era o nome que se dava a uma loja de roupas chique. Mas, como a moda vive de eternos retornos, nunca se sabe. Será que voltam a calça com vinco e a gola rolê?
As mãos da avó de Mister M não pararam por aí. Certa vez ela fez um lindo blusão para seu netinho querido. E sabe do quê? Das cortinas de casa, ora essa! Que coisa, não foi na loja do Kalil G. Gebara, não.
O Mister M me disse que adorava sair com seu blusão. Só tinha um receio: o de encontrar em uma festa mais uma pessoa usando um figurino também feito a partir de cortinas. Afinal de contas, sendo fiel ao espírito das roupas, o grande barato era ter um pouco de exclusividade.
Falando em exclusividade, as cortinas em tom pastel de hoje em dia, suspeito, não devem dar bons blusões: rasgam que é uma beleza. Não tem vovó que aguente remendar esse troço.
Encomenda entregue.
Foto do post: Senhora Alessandra, moradora de rua, que passa a vida costurando no Centro do Rio. Por Washington Luiz de Araújo
Sobre o autor: Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.