E o Bem Blogado volta com um passional miniconto – #quarentextos – da escritora e jornalista Sonia Nabarrete.
Paulinho da Viola é “parceiro” de Sonia nesta história
Duas
Rei da dissimulação, ele manteve duas famílias simultaneamente em cidades vizinhas. A apenas um amigo, em quem confiava plenamente, confessou que amava as duas mulheres — e os filhos que elas lhes deram — da mesma forma. Não poderia abrir mão de uma ou de outra.
O trabalho como enfermeiro ajudava a explicar a ausência em algumas noites e fins de semana.
Durante a pandemia, precisou ficar longe das duas famílias e acabou se contagiando e morrendo.
A cremação foi restrita à família. No caso dele, às duas mulheres, que então se conheceram.
À dor da perda, juntou-se a surpresa de saber que partilhavam o mesmo marido.
Maior que a dor, só a curiosidade.
— Vocês tiveram filhos? — perguntou a oficial.
— Sim, um casal, Rosa Maria e Gustavo.
Entendeu porque o marido não quis dar o nome de Gustavo ao caçula, como ela desejava. Ficaria com dois filhos com o mesmo nome. Filho da puta.
Quis saber mais:
— Ele foi um bom marido?
— Não poderia desejar melhor. Só lamentava não contar com ele em algumas datas, mas agora entendo que precisava se dividir entre duas famílias.
— Desculpe a intromissão, mas ele fazia nheco-nheco radical e transversal de carreirinha, com direito a bis e oratória com você.
— Sim. Foi o que fez eu me apaixonar. Grande amante. Mas ele jurou que só fazia comigo.
— Comigo também foi assim.
— Grande filho da puta— resmungaram em uníssono.
“O velório do Heitor” (Paulinho da Viola)
