“Se Lélia fosse viva hoje ela certamente estaria envolvida na luta contra o genocídio do jovem negro e o feminicídio que atinge muito mais as mulheres negras”, afirma pesquisadora à Fórum
Por Alice Andersen, compartilhado de Fórum
“Lélia González tinha um olhar aguçado para a realidade do negro brasileiro”, destacou Eliane Almeida, ativista e doutoranda em Mudança Social e Participação Política da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista à Fórum. “Foram as mulheres negras, ativistas e intelectuais, que retomaram os textos de Lélia González e que a colocaram no foco da atenção como base do Feminismo Negro Brasileiro”.
Dedicada a temas referentes à população e cultura afro-brasileira e negra, a pesquisadora comentou os 30 anos da morte da escritora mineira e destacou a importância do seu legado para a luta antirracista e feminista no Brasil. “O pensamento de Lélia é atualíssimo e que bom que ela disse e escreveu tudo o que disse e escreveu”, disse.
Pensadora invisibilizada no próprio país, Lélia trouxe, há anos, conceitos discutidos atualmente através da ideia do feminismo latino-americano, amefricanidade, interseccionalidade, pretuguês e Améfrica Ladina, desafiando o conhecimento tradicional histórico e a língua portuguesa, além de colocar na linguagem a resistência, a diversidade e a identidade da população negra brasileira. Como ressaltou Eliane, “a língua portuguesa falada no Brasil tem mais influência africana na construção”.
Mais recentemente estudada nos centros acadêmicos, Lélia é considerada uma das maiores intelectuais negras e feministas brasileiras do século 20. A autora desempenhou um papel significativo na abordagem e promoção de temáticas relacionadas a raça e gênero, sobretudo nos campos cultural e antropológico, esbarrando em diversas áreas de conhecimento. Como pioneira nas discussões interseccionais que abrangem desigualdades econômicas, de gênero e de sexualidade, Lélia via grande importância aos estudos e análises que destacavam as influências das culturas africanas e indígenas na construção cultural e intelectual do Brasil.
“Por que precisam de referência nos EUA? Aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo”
Lélia era filha de uma empregada doméstica de ascendência indígena e de um trabalhador ferroviário. Nascida em Belo Horizonte em 1935, a escritora mineira, que completaria 89 anos nesta quinta-feira (1), tornou-se conhecida por articular a ideia de que as mulheres negras enfrentam sobreposições de machismo e racismo, para além de suas colegas norte-americanas. Ela desafiou a concepção de democracia racial proposta por Gilberto Freyre e explorou as interseções da miscigenação latino-americana e africana.
Ícone do movimento feminista negro estadunidense ao lado de bell hooks, Angela Davis se preocupou com o fato de Lélia González não ser uma figura reconhecida dentro do próprio país. “Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo”, declarou quando veio ao Brasil em 2019.
Em 1962, a ativista concluiu sua formação acadêmica em História, Geografia e Filosofia na Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ) e era fluente em seis idiomas. Já “totalmente assimilada, integrada ao sistema”, deparou-se com contradições e obstáculos sociais no âmbito acadêmico, o que a motivou a se engajar e impulsionar os primeiros movimentos feministas e negros do país, utilizando tanto a psicanálise quanto o candomblé. Foi uma figura intelectual e também política, participando da criação do PT, passando pelo PDT, contribuindo nas deliberações da Constituição de 1988 e sendo parte do primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Amefricanidade
“Suas conexões com ativistas negras das Américas e do Caribe lhe deram ‘régua e compasso’ para nos deixar o caminho aberto e continuarmos a boa batalha”, lembrou a doutoranda Eliane Almeida. Lélia Gonzalez cunhou o termo “amefricanidade” na década de 1980 para representar as ancestralidades do povo negro relacionadas aos povos ameríndios e africanos. Nos seus trabalhos, a ativista foi contra as contínuas tentativas de apagamento e subjugação dessas raízes ao longo da história da colonização na América Latina, colocando a importância de resistir a esse processo, pela linguagem.
“Quando cria o termo Améfrica Ladina, cria o neologismo que aponta para uma africanidade na América abaixo da linha do Equador. Essa africanidade foi insistentemente negada. E o ladino, de esperto mas sempre usado de forma pejorativa (ladino pode ser entendido também como pessoa que se aproveita de oportunidades para tirar proveito dos outros), foi transformado por ela em adjetivo positivo”, afirma Eliane.
É pretuguês
Não cabe em Freud, Lacan e nem em Caio Prado. O nosso vocabulário cotidiano e a forma como vemos a realidade por meio dele revela a tamanha discriminação racial e sexista contra o povo negro, e o pretuguês “surge do entendimento de que a língua portuguesa falada no Brasil tem mais influência na construção de nosso idioma do que gostariam as autoridades nacionais. Ela aponta para o fato de que certas letras não tem o som que teria em português e que por isso são alteradas de maneira que se consiga entender o que se quer dizer. Portanto, ela entende que os pretos dos interiores do Brasil não falam um português com erros, mas sim um pretuguês”, reiterou a pesquisadora.
“A cultura brasileira é uma cultura negra por excelência, até o português que falamos aqui é diferente do português de Portugal. Nosso português não é portuguê, é pretuguês […] com todo um acento de quimbundo, de ambundo, enfim das línguas africanas”, afirmou Lélia em uma entrevista concedida ao Patrulas ideológicas.
Desfetichização do corpo feminino negro
González apontou que o movimento de mulheres na América Latina reproduz padrões de exclusão e dominação racial, sendo as “negras e indígenas testemunhas vivas” dessas práticas. De acordo com Eliane, “ela se dedicou a lutar pela desfetichização do corpo feminino negro”. A escritora disse para um jornal certa vez, que “lidar, por exemplo, com a divisão sexual do trabalho sem articulá-la com a correspondente ao nível racial é cair em uma espécie de racionalismo universal abstrato, típico de um discurso masculinizante e branco”.
Para a pesquisadora, “se Lélia fosse viva hoje ela certamente estaria envolvida na luta contra o genocídio do jovem negro, contra o feminicídio que atinge muito mais as mulheres negras”, disse. “Estaria de braços dados com os movimentos de mães que perderam seus filhos para o braço armado do Estado. Estaria palestrando e formando novos quadros de ativistas negros, preparando-os para assumir cargos políticos. Era o que ela acreditava. Foi como viveu sua vida. Se dedicou à luta contra o racismo e contra as violências de gênero e raça”.
As ideias de Lélia González são reunidas na obra “Por um Feminismo Afro-Latino-Americano”, lançada em 2020. Lá, seus textos produzidos no período de 1975 a 1994 são compilados, abrangendo o fortalecimento de movimentos sociais e o processo de redemocratização, nos quais Gonzalez desempenhou um papel ativo. A obra inclui ensaios acadêmicos, artigos destinados à grande imprensa e jornais alternativos, além de entrevistas e transcrições de palestras apresentadas em diversos congressos internacionais.