Mais um…. O que é mesmo? Ah, mais um capítulo da coluna “A César o que é de Cícero”. Só para lembrar, Cícero César Sotero Batista é doutor em esquecimento. Perdão em Literatura. No entanto, nunca se esquece de enviar sua coluna, mas cuidado que ele pode levar, sem querer, sua carteira.
“Quando paro em um sinal de trânsito, meu pensamento vagueia.
Quer um exemplo de situação embaraçosa? Digamos que se trata de uma conversa entre uma atendente e um homem que deseja comprar um par de calças.
“Número do celular?”, pergunta a moça a preencher meu cadastro. “Não sei”, respondo. E em antecipação aos questionamentos sobre eventuais motivos, complemento: “Eu não costumo ligar para mim”.
A minha resposta é verdadeira? Eu rio com as mãos no volante. Eu realmente tenho uma enorme dificuldade para decorar a sequência de números de meu telefone celular.
Tenho, uma vírgula. Tive. Depois de muito esforço, creio que consiga dizê-lo de pronto, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Basta de passar vergonha.
Muitas vezes tive que perguntar à minha mulher qual era meu número. O meu número. Imagine estar no meio de uma conversa e ser corrigido a respeito do próprio número.
Qual é o meu número mesmo? Finalmente! Ufa! Agora só falta decorar a identidade, o Renavam, quem sabe, glória máxima, o chassis do meu velho automóvel. Eu sei a placa? Anotaram?
E lembrar todas as senhas, é claro. Senha daquilo, senha disso, senha daquilo outro. Dos cartões do banco, dos emails, dos streamings, dos WiFis e por aí vai.
É que, sei lá, alguém pode me perguntar assim feito arguição de memorial. É preciso estar atento e forte.
Acho que tenho que comprar um HD externo para minha cabeça.
(Cá entre nós, de vez em quando, eu anoto as senhas no interior de um livro. Não tenho como esquecê-las, uma vez que estão bem perto dos objetos que mais aprecio na vida, ao alcance dos olhos e da mão, como que em permanente vigia).
Talvez até seja algo inconsciente, algo que possa ser curado com boas noites de sono e visitas regulares a terapeutas confiáveis, mas o fato é que tenho uma dificuldade enorme de lembrar algumas coisas – o esquecimento do meu próprio número de telefone celular virou folclore entre os mais chegados, mas não é única coisa que deixo de lembrar.
Poxa, que amnésia seletiva a minha. Eu me lembro do número de telefone da casa de meus pais de trinta anos atrás: 2618679. Não me pergunte o atual, porque não sei. Eles mudaram de operadora e lá se foi o número decorado.
(Cá entre nós, por que eu estou neste momento tão analógico? Eu não quero voltar ao telefone cinza no meio da sala)
Este sinal parece eterno.
Acontece que há gente distraída, gente distraída pensando na morte da bezerra, e gente fazendo da distração um mote para a escrita de uma crônica, que é o meu caso agora.
Dói, mas admito: sou esquecido. Bate em mim terrível acanhamento quando, em um evento musical, me lembro que não consigo me lembrar das letras, nem mesmo das minhas.
Quer dizer, a bem da verdade, de quando em quando me lembro, mas o que sai parece fala de sertanejo de Cabral: vem no idioma pedra, é difícil cantar com pedras na boca.
Houve casos em que fiz uma letra ou improvisei na hora ou coisa semelhante, bancando o partideiro. É, pode ocorrer. Mas lembrar da letra original eu não garanto, não.
Por isso, invejo os que têm boa memória.
Será que tem gente assim como eu no mundo? É claro, eu não sou tão exclusivo assim. Eu já ouvi dizer que teve um sujeito que foi ao shopping de carro e voltou de ônibus. O coitado deixou o carro no estacionamento e só depois se deu conta da mancada!
Bem, ainda não cheguei a tal estágio. Mas, para compensar, perco a chave do carro com habilidade incomum. E costumo levar as chaves de outras casas no bolso. É sério.
(Cá entre nós, convém manter chaves a uma distância segura de minha pessoa.)
Me esqueço muito, mas também me lembro bastante. Eu era mestre em trocar de carteira com o meu pai. Ia visitá-lo e levava a carteira dele, por engano. A danada era pretinha que nem a minha, parecidíssima, igualzinha exceto pelo recheio, é o que posso dizer a meu favor quando, na verdade, o melhor seria ter ficado calado. Eu a levava por distração.
Este meu deslize acho que doutor Freud explica. Meu pai, quando se deu conta da recorrência sintomática, resolveu me poupar da vergonha pondo a carteira dele em local seguro, de difícil acesso. E eu também, precavido, não tirava mais a carteira do bolso de trás das bermudas, mesmo que isto significasse que minha bunda ficasse amassada.
Meu pai morreu. Carteira dele não há mais. Agora, quando eu vou ao Engenho Novo, se for para levar uma carteira, levo a do meu irmão, para manter firme a tradição. Me lembro do exato momento
em que meus filhos saíram aos solavancos da barriga da mãe deles.
Me lembro, mas esqueço muito. Já esqueci prova de aluno. Isqueiro, então, já perdi inúmeros. Eles caem no buraco negro dos bolsos. Cheguei a viajar para uma cidade para fazer concurso, mas não era o dia correto.
Não satisfeito, voltei à cidade na data prevista para participar do bendito certame. Voltei logo para casa, por ter sentido que minha prova não tinha sido lá grandes coisas.
Mas…
(Cá entre nós, devo ter perdido o Certificado de Reservista por lá, muito provavelmente. Não o encontrei mais em minha caixa de documentos)
Eu me perdi muitas vezes; em algumas ocasiões, tendo me perdido, me encontrei.
E pra você que me esqueceu, aquele abraço.
E pra você, moça branquinha feito a neve, se tiver se esquecido de mim, me leve no esquecimento.
O sinal vai abrir.
Abriu.
Por favor, não se esqueça.
Não esqueço.
Não esqueço.
Adeus.
Adeus.”
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.