Lembranças de um Sete de Setembro

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva à rotina de um soldado raso no quartel e um dia de Sete de Setembro em sua vida. Eu, que “caí de paraquedas” num quartel nos idos tristes de 1976, durante 11 meses e 16 dias, fui transportado neste texto para este e outros nada independentes Sete de Setembro. (Washington Araújo)

“Quando o Sete de Setembro se aproxima, Bucco* se lembra da temporada que passou no quartel como soldado raso. Não foi um tempo difícil para ele, uma vez que gente como os Bucco é sempre bem-vindas em um quartel. Afinal, eles trabalham desde cedo, são inteligentes e habilidosos, e não há quartel que não tenha algo a se consertar.





Geralmente, Bucco tinha como atribuição caiar os tradicionais meios fios e as metades de árvores que ficam próximas do quartel; mas houve vezes em que ele e mais outros soldados subiram em andaimes para reformar as laterais dos quarteis; pintaram de verde-oliva os capacetes; fizeram pequenos consertos nos motores de arranque dos jipes. Todas as tarefas sendo cumpridas a contento, descontada a vez em que ele e mais dois quase caíram de um andaime.


Bucco, apesar de ter entendido facilmente o processo de desmontagem do fuzil, não se aventurou muito em tal arte devido a seu temperamento. Ele não gostava de armas. Aliás, era coisa estranha ser pacífico, quase discreto, e ter sangue italiano ao mesmo tempo; mas era ele assim, quase fora da curva.


Naquele Sete de Setembro de 199-, com toda as rapaziada aquartaledada, foi difícil dormir. A Segunda Companhia do Batalhão dos Grandes parecia em festa. Foi preciso que as luzes fossem acesas para que o primeiro tenente Falcon apresentasse com sua voz de trovão os argumentos mais razoáveis. Depois de tal esporro, dormir nem todos dormiram, é fato, mas que o povaréu se aquietou, se aquietou.

Foi quando Bucco, cujo nome de guerra era Spocartte, ficou olhando para fora da janela, de onde se via o gigantesco gasômetro, imaginando o que teria ocorrido se o tal do capitão Macaco tivesse cumprido à risca a missão que lhe fora designada.


Para um recruta como ele, mal saído dal fraldas, recém-entrado na caserna, todo pensamento militar era cercado de intensa lavagem cerebral. Um “Sim, senhor!” de pés juntos era capaz de eliminar muitas sinapses.


Enfim, muitos anos de reflexão prática em história iriam pelo ralo abaixo até a primeira baixa. Mas fazer o quê, ele não poderia deserdar, havia o inimigo à espreita. Era, por essas e por outras, que os soldados repetiam orgulhosos em coro quando corriam “Infante é o guerreiro que mata guerrilheiro”. Era uma paródia de música infantil, cantada a plenos pulmões pelas ruas do bairro onde o rei dos tempos de antanho tinha uma residência.


O dia raiou, sempre chega, quer peguemos no sono ou não. Bucco, apesar de cheio de areia nos olhos, seguiu a massa após o toque: vestiu-se, tomou seu mate com leite e pão com blocos de manteiga, recebeu seu fuzil, embarcou no caminhão que o levaria ao centro da cidade, onde ocorreria o tradicional desfile.

Por um instante, veio-lhe na cabeça a imagem de quando era pequeno. Um dia ele não só foi ao desfile como também ganhou uma bandeirinha brasileira e um boneco paraquedista de plástico que saltava de paraquedas quase de verdade. Foi apenas um instante, mas foi como se o tempo tivesse voltado em um flash. Chegou a sentir o calor no rosto e a expectativa de lançar o seu paraquedista da altura da árvore que ele, Bucco, tinha em casa.


O quartel do Bucco tinha como missão o patrulhamento da região. Não eram tempos difícieis, havia coisa mais importante a fazer do que se engraçar com o exército. Foi isso que deu a Bucco a oportunidade de acompanhar o desfile. Não é que ele viu os boinas azul-ferrete, alunos da AMAN, passar? E não é que ele, pasmado, reconheceu um Cappelli*, ex-amigo de infância, passar, todo empertigado, vibrando ao som da marcha?


Cada pisada no chão do Cappelli soou ao pobre Bucco como se fosse uma pisada no coração, tamanha era a inveja. Bucco sentiu na pele as dores da falta de oportunidade, da rejeição, dos poucos estudos, de quem tem que trabalhar cedo e conta, quando muito, com um pouco de futebol como parte de pão e circo.


O desfile foi cumprido. Para os olhares de muitos, demonstrava que o país estava preparado para defender sua soberania de quem quer fosse – ainda mais se fosse de um inimigo oculto, interno ou externo.

Os soldados foram liberados à tardinha para irem para casa. Bucco, ou melhor, Sporcatte, ou melhor, Porco Spock, como os gozadores inventa-línguas o chamavam, ia pela rua olhando para o Gasômetro. Imagine o estrago que uma bomba sendo lançada ali haveria de fazer, era o que ele pensava enquanto tentava de toda maneira deixar de andar como se estivesse marchando.


Quando chegasse a hora ele daria ou não ao filho um bonequinho paraquedista?”

*Bucco, personagem da coluna, é um “Faz tudo”, que vive em busca de bicos. Sempre ligado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.

*Cappelli – família de classe média, personagem da coluna nem sempre sensível com os problemas do próximo.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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