Lembranças de uma “Sexta Feira da Paixão” numa carta ao irmão

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, envia uma carta aberta ao irmão Dênis com reminiscência de um dia na infãncia, um dia de Sexta-Feira Santa.

“Caro Dênis*, eu era bem pequeno, talvez você ainda não tinha nem nascido. Pois bem, havia uma igreja católica na Praça Seca, ali na rua Barão. Nosso pai e eu fomos a ela justamente em um dia como esse de Sexta-Feira Santa, Sexta da Paixão.





Não me lembro da liturgia. Quanto a isto, acho que as lembranças de Vila Isabel vêm mais a calhar. A gente subia por um elevador muito do antigo para assistir à missa no “Convento”, se lembra? A gente não parava quieto, ficávamos a pular as formas geométricas do velho e bonito piso – deve ser bonito, não me lembro bem. Entretanto, com certeza era bem velhinho, mais velhinho do que as freiras de lá.


Voltando ao assunto, o que me impressionou naquele dia na Praça Seca foi o Cristo levar uma surra dos soldados romanos. Poxa, é claro que era uma representação, uma cena, as espadas eram feitas de bucha vegetal, aquelas que ainda podem ser encontradas na feiras livres ou nas casas de macumba. Acontece que para uma criança a cena, apesar de ser uma representação, era bem real. Naquele dia senti pena do Cristinho que apanhava que nem pagão dos soldados romanos.


Não havia ainda entre os nossos a tradição de recebermos chocolates. Acho que nem de comer bacalhau na Semana Santa. Eram coisas que não me fizeram falta, eu não era infeliz por isso. Eu tinha um reloginho do Fred Flintstones.


Foi nesta mesma igreja que certa vez vi meu pai abraçar a minha mãe. Achei a cena comovente à beça, digna de ser repetida. Tanto que quando na Escola Honduras os alunos fizeram uma visita à igreja, eu lasquei um abraço em uma coleguinha de classe. Assim eu reproduzia o gesto de meu pai. Assim estava comprovado que a gente faz algumas coisas que testemunhamos os adultos fazerem.


Aqui em Nilópolis a saudosa avó da Layla e companhia fazia jejum nessa época. Mulher de aldeia, que não sabia nem falar o “brasileiro” sem sotaque, para ela o jejum era uma coisa sagrada (no sentido de respeitosa) e começava bem antes da Páscoa. Acho que cerca de um mês antes.


A avó da Layla, a quem chamávamos de Taita Julia, era uma pessoa admirável. Senti enormemente a sua perda. Ao contrário de tio Josué e de tio Paulo, que se foram seu meu último olhar, eu pude render as minhas homenagens a ela, indo a seu enterro.


Ela era admirável, eu disse, porque parecia que a maior felicidade dela não tinha a ver com coisas materiais e afins. Ela gostava de casa cheia, de muita gente, de cozinhar para aquele batalhão.

A família da Layla, por morar mais perto, estava pelo menos duas vezes ao mês, na casa da Taita para almoçar. A alegria e a hospitalidade da Taita compensava o tédio costumeiro do domingo. Domingo é dia de futebol na tevê e também, de vez em quando, de um tédio maior que o céu.


Esta Semana Santa foi absolutamente especial porque coincidiu com o aniversário da Cecília*. Ela ficou radiante por ter recebido uma cesta de café de manhã com coisas de café e outra cesta com guloseimas de fazer corar o João e a Maria da historinhas da Carochinha. Cecília talvez tenha herdado de mim este incontornável desejo de expressão que se manifesta pelo desenho, pela dança, pela concentração com que se dedica à sua arte. Espero que herde, não sei de quem, um senso prático. Talvez de Layla, por suposto, por ela ser no fundo uma pessoa mais prática, muito mais prática do que eu. Alguém tem que ser, né?


Amanhã veremos Judas pendurados nos postes? Quantos Lulas, quantos Bolsonaros? Era uma farra incrível acompanhar o charivari (palavra que aprendi na faculdade que no meu entender significa justiça popular e que tem muito a ver com linchamento). Eu nunca sonhei em produzir o meu Judas, acho que ainda dá tempo.


Enfim, veja que esta tal de queima enquanto expurgo vem da Europa, pelo menos desde o início da Idade Moderna – pelo menos se levarmos os limites temporais que o historiador Peter Burke usou no seu “A cultura popular na Idade Moderna”.


Iniciei minha apresentação do seminário sobre o livro do Peter Burke nas aulas de mestrado com uma letra de samba-enredo (Quá Quá Quá Quaresma!) que continha versos como esses:


“Charivari,
Pra difamar
É isso aí
A cultura popular”

E o indefectível refrão:
“Salve Bakhtin,
Evoé, Gargantuá!
Toque o Rommelpot
Quero ver porco sangrar!
O céu fica na terra
Tudo fora do lugar”
Ferreiro é que sem ferra
Velha pode engravidar”

Detalhe: eu não li o “Gargantuá” de Rabelais!

Até amanhã,
César”

*Dênis, irmão do cronista

*Layla, companheira

*Cecília, filha

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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