Por Ademir Assunção, poeta e jornalista
Há situações que poucos artistas gostam de mencionar, mas que considero importantes testemunhos para o entendimento de uma época.Convivi muito com Paulo Leminski na segunda metade dos anos 80. Ele estava tentando se estabelecer em São Paulo e ficou hospedado no apartamento da cantora Fortuna, minha namorada na época. Já o conhecia e tínhamos um vínculo vigoroso, que se fortaleceu ainda mais no convívio quase diário deste período. Leminski, ao contrário do que muitos pensam, era famoso em vida, tanto quanto um poeta pode ser. Mas, mesmo com sua intensa atividade criativa – e jornalística também – e com a repercussão de sua arte e de seu pensamento, passava perrengues do ponto de vista da sobrevivência.
Lembro de muitas situações e lembro vivamente de suas palavras, repetidas em diferentes circunstâncias: “O nível de competição no sistema capitalista está chegando a um estágio darwiniano.”Trocando em miúdos, em nosso bom e velho portuga-brazuka, o que ele estava dizendo era: “a sobrevivência está se tornando e se tornará cada vez mais barra pesada.”
A minha leitura é que ele intuía com nitidez o neoliberalismo brutal que estava se instalando. Estou falando de um contexto que remonta há mais de 35 anos.
Um panorama dominado pelo culto exacerbado ao dinheiro, pela competição desmedida para consegui-lo, e pelo consequente desprezo pelas coisas da imaginação e do espírito criativo.
Desprezo que chegou ao auge na era bozozóica, mas que já vinha sendo preparado pela entronização suprema do Deus Mercado, em que o “valor” das coisas criativas é avaliado quase que unicamente pelo seu sucesso de vendas.
Lembro muito bem das palavras de Leminski em uma entrevista: “Escritores acham indecente a ideia de o livro ser subvencionado pelo Estado em Cuba, mas não acham indecente seus processos criativos passarem pelo crivo de editoras comerciais, o que vale dizer, pelo mercado.”
Cito de memória, mas para os menos apressados, há um vasto campo de reflexão nessas palavras. É possível que intuísse que neste panorama não haveria mais espaço para sua existência física, a existência de “um poeta em tempo integral”, como se auto definia e como comprovava quem partilhava de seu cotidiano. Alguém entregue 24 horas por dia ao exercício do pensamento e da atividade criativa – por consequência, inábil e sem paciência para o mundo cão da sobrevivência.
Hoje o mercado e, felizmente, seus herdeiros, parecem faturar razoavelmente bem com sua obra. Algo que ele mesmo não conseguiu usufruir.
E isso diz muito a respeito de uma época. Época cão – sem ofensas a nossos queridos e adoráveis animais domésticos.