Esquizofrenia geográfica
De um lado do mundo morrem milhões de pessoas, incluindo crianças de todas as idades, de forma bárbara. Jovens mulheres são cooptadas por grupos fanáticos, como o EI, ou são seviciadas. A exigência de um ritual religioso de apedrejamento de uma pilastra, que “simboliza o demônio” e, por sua tradição merecia total cuidado na organização, vive o caos dando fim à vida de milhares que iriam cumpri-lo na peregrinação à Meca e acabam pisoteados.
E do lado de cá uma multidão se comprime para curtir um festival de Rock. Minha cabeça gira, tendo sempre ao fundo a imagem brutal do pequeno sírio Aylan. Fecho os olhos e outra imagem se sobrepõe. Estamos todos – os dito humanos – numa grande orgia, embebedados e drogados, ao som de um heavy metal que faz sacolejar os neurônios e impede a visão do real.
Outro dia ouvi alguém dizer que já vivemos a nossa cota de tragédia ao encararmos uma ditadura que martirizou a tantos. Assim como nossos vizinhos de América do Sul. Não entendi muito bem. Então agora é o momento de outros povos darem a sua cota e a gente que se lixe. Tipo passou a nossa hora?! Quanto mais o mundo se moderniza mais as tragédias se intensificam e, sorte a nossa, não somos a bola da vez?!
A sensação de descompasso não se aplacou. Mesmo lembrando que o Papa Francisco, essa figura extraordinária que soa como um brinde em meio a tanto tormento, estreou no Congresso americano e com todas as letras acusou as suas veneradas armas de estarem manchadas de sangue. Poucas vezes vi uma porrada tão bem dada. A cara amarrada dos empresários armamentistas e fascistas de braços cruzados, em meio aos aplausos entusiasmados que “Nossa” Santidade mereceu, foi um bálsamo na ferida.
A (pre)potência, que sempre entrou na casa dos outros arrombando a porta em nome do que ditava ser o melhor para todos, viu solenemente criticados os seus métodos em cadeia mundial distribuída pelos diversos tipos de mídia. De forma dura, mas sem perder a ternura. Uma humilhação e tanto!
Ainda assim ao me balançar à voz de Rod Stewart, Lulu Santos ou All Jarreau, vendo pela TV momentos do festival que assolou a cidade, puxei na memória uma palavra, uma letra, um minuto de silêncio que reverenciasse, durante o mega evento, os irmãos de outras línguas tão dolorosamente desaparecidos. Não encontrei nada.
Muitos certamente perguntarão com desdém se eu queria fazer política num show de rock. Pois acho o espaço perfeito, respondo. As imagens foram transmitidas para o mundo inteiro. Por que não dedicar um minuto a uma mensagem de solidariedade?
Me dou conta de que a geografia é totalmente esquizofrênica. O que contribui, acredito, para tornar cada vez mais distante um global projeto de paz. Continuei triste.