Por Washington Luiz de Araújo, Brasil 247 –
Lilian Celiberti e Universindo Diaz contam, em entrevista, como escaparam das mãos de policias brasileiros e uruguaios e da morte; sequestrados e torturados com 27 e 29 anos, respectivamente, os dois sobreviveram para contar suas histórias no livro “O Sequestro dos Uruguaios”; leia entrevista
Dando continuidade à compilação de entrevistas feitas para a Revista Brasileiros a respeito das atrocidades praticadas pela ditadura militar, vou contar aqui a história de dois uruguaios sequestrados e torturados na época das ditaduras na América Latina. Esperamos que esta reedição de reportagens sobre personagens que arriscaram ou perderam as vidas pela volta da democracia no país cale fundo nos desavisados ou irresponsáveis que pedem o retorno de tempos sombrios vividos pelo país durante 21 anos. Neste texto, trataremos um pouco sobre o que se chamou de Operação Condor, uma criminosa rede criada por policiais civis e militares de países latino-americanos tentando unificar o “modus operandi” da tortura e do sequestro naquela fase triste para a nossa história. Acima de tudo, falaremos da luta de pessoas que arriscaram o que tinham de mais importante para que seus compatriotas pudessem viver em completa liberdade e, assim, livres, participassem da construção de uma realidade mais tolerante, digna e justa.
Universindo Diaz e Lilian Celiberti contam, em entrevista feita por mim para a reportagem “Depois da Tempestade” (Revista Brasileiros, 24/11/2010), como escaparam das mãos de policias brasileiros e uruguaios e da morte. Universindo faleceu em Montevidéu em setembro de 2012, aos 60 anos, vítima de um câncer na medula. Lilian continua no ativismo político e feminista no Uruguai, à frente da ONG Cotidiano Mulher, que tem, como um de seus lemas, “Basta de rosários em nossos ovários”, utilizado na luta contra a interferência da Igreja na questão do aborto.
Universindo e Lilian Celiberti só não foram assassinados como outros 180 compatriotas – muitos deles jogados no Rio da Prata – porque seu sequestro ocorreu em Porto Alegre, e, logo que a imprensa tomou conhecimento do fato, denunciou o crime e eles escaparam de ser mortos.
Sequestrados e torturados, Lilian, então com 29 anos, e Universindo, com 27, juntamente com as crianças Camilo, na época com 8 anos, e Francesca, com 3, sobreviveram à morte para contar suas histórias no livro “O Sequestro dos Uruguaios”, do repórter Luiz Cláudio Cunha, que recebeu um telefonema em uma tarde de fechamento da edição da revista Veja, em Porto Alegre, no dia 17 de novembro de 1978, e denunciou o sequestro. Juntamente com o repórter fotográfico João Batista Scalco, Cunha foi ao local indicado e teve uma pistola apontada para sua cabeça. De lá ele conseguiu sair para denunciar mais um terrível capítulo assinado pela Operação Condor, uma rede de cooperação montada pelas ditaduras militares da América do Sul com o intuito não só de trocar conhecimento e fazer intercâmbio de métodos “modernos” de tortura, mas também esquematizar e praticar a invasão de território para o sequestro de refugiados.
Sem perdão aos torturadores
Lilian Celiberti diz que jamais perdoará os torturadores, não pelo mal que sofreu, mas pelo que foi impingido a seus filhos. Sangue frio para pensar nos filhos e também na causa política foi o que Lilian Celiberti precisou ter durante a sessão de tortura nas mãos dos carrascos uruguaios que a sequestraram com Camilo, então com 8 anos, e Francesca, com 3, além de Universindo Diaz.
Filha e neta de militantes do conservador Partido Nacional, Lilian se lembra de que quando criança era levada pelas mãos do pai para a sede do partido.
Início
Com toda a liberdade concedida pelos pais para se envolver em questões políticas, Lilian começou a militar aos 16 anos. Em 1968, com 18 anos, já atuava no grêmio estudantil. Três anos depois, casada com Hugo Cassariego e já mãe de Camilo, então com 10 meses, a professora do primário foi detida pela primeira vez. “Tínhamos uma situação de semiclandestinidade. Não éramos clandestinos, mas sim a organização a que pertencíamos naquele momento, a Federação Anarquista Uruguaia. Detiveram-nos em 1971, processaram meu marido e o mandaram para o cárcere de Punta Carretas. Eu fui viver com meus pais, que me davam todo o apoio.”
O anarquista Hugo Cassariego ficou preso um ano e meio. Durante esse tempo, Lilian continuava militando. Mas em uma greve do magistério, seu rosto e nome, ao lado de outros, apareceram na televisão. Em um comunicado à população, a justiça militar afirmava que aquelas pessoas estavam sendo procuradas. “Fui presa. Obtive em seguida liberdade judicial, mas mesmo assim os militares me mantiveram presa durante sete meses, de setembro de 1973 a abril de 1974.”
Mesmo presa, Lilian começou a se movimentar para sair do Uruguai, pois os pais entenderam que essa era a solução. “Eles nunca me deram a liberdade. Levaram-me para fazer o passaporte e me acompanharam até a casa dos meus pais para a despedida. Juntei-me ao meu marido e meu filho, que já estava com três anos e meio, e fomos para a Itália”.
Em 1975, na Itália, nascia Francesca, e o casal seguiu a vida, militando pelo Uruguai através dos comitês. Trabalhavam, ela cuidando de crianças, e Hugo vendendo pinturas em uma feira. Mais tarde, o marido foi para uma fábrica, e ela, para a biblioteca de um colégio. Um ano difícil: Francesca pegou salmonela e Camilo foi acometido de meningite.
Em 1976, porém, ela voltou a se movimentar mais politicamente, retomando as atividades com os companheiros do Partido pela Vitória do Povo. Em seguida, Lilian foi para o Brasil. Pouco antes, passou pelo Uruguai, onde ficou clandestina durante uma semana. “Foi uma coisa muito impactante, porque não tinha estado em meu país desde 1972, por cinco anos, e havia uma transformação radical. Era uma cidade cinza, pobre, as pessoas estavam de cabeça baixa. Na saída, fiquei quase duas horas e meia chorando de angústia.” Outro motivo de tristeza: a separação do marido, que não se conformava com a reaproximação dela com o partido.
Entrada no Brasil e sequestro
Em 1978, Lilian entrou no Brasil com os filhos, pois entendia que as condições políticas estavam melhores. Aqui, teve contato com Universindo. Entrou sem temor, com o passaporte oficial. Mas o medo voltou à tona com o sequestro em Porto Alegre. Medo e dor: “Começaram a me torturar imediatamente em uma delegacia, até descobrirem meu endereço em um bolso e me levarem ao apartamento, quando detiveram meus filhos e Universindo”. De lá, foi levada ao Uruguai, onde armou a “ratoeira”, como descreve o jornalista Luiz Cláudio Cunha no livro O Sequestro dos Uruguaios.
Presa de 1978 a 1983, Lilian não passou nesse período por choques elétricos, simulação de fuzilamento e afogamento ou pau de arara, mas sofreu outro tipo tortura: “Prender uma pessoa em uma solitária também é uma forma de tortura, mas, em geral, chamamos de tortura quando existem pancadas, choques. Na verdade, o que tínhamos era uma política de instrução anímica, de deixar sem livros, sem falar, sem ir ao banheiro, sem banho, sem sair para caminhar. Durante um ano e meio, minha vida foi assim”. As visitas só eram permitidas a cada 15 dias, por meia hora, ao lado de policiais com cachorros. Era o único momento em que Lilian falava com alguém. O companheiro diário era um livro, que, quando chegava ao fim, ela lia e relia, do início ao fim, do fim ao começo.
Sem arrependimento
“Eu creio que o arrependimento é uma culpa, e eu, ao contrário, tratava de sair dessa situação. Já sabia quem queria me destruir, então tinha de tratar de ajudar a mim mesma. Óbvio que, na realidade, eu era meu principal inimigo, porque me sentia muito responsável pelo que havia se passado com meus filhos e esse era o ponto de grande fragilidade. Tinha de tratar de me recompor perante esse ponto de debilidade, senão me destruiria. Então, tratei de trabalhar comigo mesma para sobreviver e resistir a essa situação.”
(…) Às vezes, quando dava um abraço em minha mãe, passava para ela alguma coisa escrita nas folhas, nos papéis de maço de cigarro. E meu pai decifrava isso e lia para advogados e outras pessoas. Até que um dia publicaram uma coisa dessas e quase me mataram. Até ameaçaram prender minha mãe. Ela tinha muito medo, mas como todas as mães, era muito corajosa.”
Sobre os filhos: “Foram entregues aos avós, sim, mas ficaram 17 dias detidos. Isso eu não perdoo”.
Sequelas herdadas pelo filho
“Camilo sofreu muito mais, porque já tinha 8 anos e sua irmã, 3. Francesca não tem lembranças disso. Claro, ela chorava todos os dias, e ele se sentia responsável por ela, porque era sua irmã. Para ele, foi muito mais traumático, no entanto creio que, agora, superou. Todavia, lhe custa falar disso, mas é uma pessoa muito sensata. Demorou a encontrar seu caminho, passou sua adolescência muito perdido, mas hoje é um pai muito responsável, muito amoroso.”
Universindo: o início no ativismo político
“O ano de 1968 foi emblemático, eu fui morar em Salto, aos 17 anos, para terminar o pré-universitário. Salto era industrial e turística, com mais agitação, assembleias estudantis e sindicais, com presença maior de setores de esquerda. E aí comecei a me interessar pela questão política.
“Fiquei em Salto em 1968 e 1969. Em 1970, aos 19 anos, fui para Montevidéu cursar Medicina. Estudei de 1970 a 1975, mas não concluí. Fui para a clandestinidade. Nessa época, o percentual de filhos de operários que entrava na universidade era mínimo. Geralmente, os filhos dos trabalhadores faziam ofícios, ou magistérios, ingressavam nas instituições públicas, nas prefeituras, ministérios ou na polícia e nas forças armadas. Por sorte, na minha família, ninguém seguiu o sacerdócio nem as forças armadas.”
Perseguição
“Houve uma fuga de presos. Foram 111 detentos, muitos deles tupamaros, inclusive o atual Presidente da República, José Mujica [na época da entrevista, Mujica ainda era presidente], que fugiram do presídio de Punta Carretas por um túnel em 6 de setembro de 1971. Aí, em 1972, as coisas se complicaram muito, houve uma ofensiva militar e, naquele momento, começamos a ocupar posições políticas. E então houve o golpe no Uruguai e passaram a censurar a imprensa. Isso foi imediatamente enfrentado pela Comissão Nacional dos Trabalhadores, a CNT, que convocou uma greve geral. De 1964 a 1973, a CNT preparou pessoas para o confronto e chegou a hora. O Uruguai foi paralisado por esses trabalhadores e estudantes durante duas semanas. Começaram as perseguições, se incrementaram as detenções e a tortura. Em 1975, fui à Argentina porque estavam me caçando no Uruguai. Lá, participei da formação do Partido Protetor do Povo. Naquele momento, o partido era uma força importante, com presença dentro e fora do Uruguai. Em 1976, houve uma ação dos exércitos e das inteligências da América Latina com o objetivo de desarticular todos os opositores dos regimes ditatoriais, com presença no Chile, Paraguai, Uruguai e Brasil, depois rumaram para Equador e Bolívia. Então, começou a perseguição unificada na América Latina.”
O desassossego no exílio
“Somente em 1978 fui para o Brasil. Antes, passei pelos Estados Unidos e pela Suécia. As coisas estavam insuportáveis para os latino-americanos, torturavam e matavam um número impressionante de pessoas. Em 1976, estive em um ato na Organização das Nações Unidas. Algumas pessoas me propuseram ficar, mas eu não ficaria nos Estados Unidos nem em sonho. Depois de voltar para a Argentina, fui para a Suécia em 1977, para um acampamento de imigrantes no sul do país. O governo sueco nos tratou muito bem, como cidadãos do mundo.”
(…) No total, fiquei uns nove meses na Europa. Mas quis voltar. Sou uma pessoa de esquerda, não estava ali para estudar e ganhar dinheiro, queria militar pelos uruguaios.”
(…) Nesses anos, as pessoas estavam todas preocupadas, angustiadas com os mortos, os desaparecidos, com a luta. Então, com um grupo de companheiros, decidi voltar para a América do Sul. Como, logicamente, não podíamos voltar para o Uruguai, pois tínhamos de nos manter seguros, fomos para o Brasil. Nessa época, em 1978, o Brasil estava vivendo um processo de abertura democrática. Viemos em um grupo pequeno do Partido pela Vitória do Povo, o PVP, com documentos falsos.”
O sequestro
“Em um domingo, dia 12 de novembro de 1978, Lilian foi a um encontro na rodoviária e foi presa lá. Eu ouvi um “Você está preso” no momento em que saía com os filhos de Lilian para assistir a um jogo do Internacional, no Beira-Rio, por volta das duas horas da tarde. Eram policiais brasileiros e uruguaios, militares e civis”.
Tortura em Porto Alegre
“Eles nos levaram a uma delegacia, me tiraram as roupas e me jogaram no chão. Depois, fui para o pau de arara, do meio da tarde até a meia-noite. Perguntavam-me e jogavam água fria. A Lilian também foi muito torturada, mas também não disse nada. Na mesma noite, fomos levados de volta ao Uruguai. Passando a fronteira, já de manhãzinha, começaram a nos torturar novamente, com as crianças nas proximidades. Até que a Lilian lhes disse que na sexta-feira haveria uma reunião na casa de Porto Alegre e que, se liberassem seus filhos, ela entregaria os companheiros. Eles gostaram disso, pois queriam prender principalmente Hugo Cores [um dos líderes da resistência uruguaia]. Levaram-me com as crianças para Montevidéu e voltaram para Porto Alegre com Lilian. As crianças seriam entregues para os avós, mas demoraram para fazer isso. Fui para um centro de detenção, onde fui torturado e fiquei até o dia 6 de dezembro de 1978. Depois, fui para uma penitenciária, onde fiquei preso até 1983.”
“Só bem depois fiquei sabendo que Lilian armou o encontro e citou uma senha por telefone para um companheiro para alertar que não comparecessem, pois estava detida. E assim Hugo Cores, de São Paulo, avisou o jornalista Luiz Cláudio Cunha, da Veja, em Porto Alegre, que estava havendo um sequestro na Rua Botafogo, 621, apartamento 110, bairro Menino Deus. Só depois que a notícia saiu na imprensa é que entregaram as crianças para os avós. Lilian foi levada de volta ao Uruguai, onde também ficou presa até 1983.”
Valeu a pena
“Acredito que é muito gratificante trabalhar pelo bem do coletivo. Hoje, a América Latina está melhor socialmente em razão das lutas empreendidas nas décadas de 1960 e 1970. E isso que temos hoje, um clima de liberdade, está relacionado com a luta pessoal e coletiva que tivemos. Acredito realmente que valeu a pena. Hoje sou historiador, trabalho na Biblioteca Nacional, tenho um filho também chamado Camilo, com 23 anos, cuja mãe, anarquista, ficou presa durante 13 anos. Eu e os companheiros e companheiras daquela época, sobreviventes, escrevemos livros, fazemos filmes para que não voltem mais tempos tão cruéis.”
Acusação e punição aos torturadores
“Nós mantivemos todos os esforços para prendê-los. (…) Uma coisa é contar para a minha família que me torturaram e outra é falar para um tribunal que me torturaram e acusar fulano. Mas seguimos solidários na luta, para levarmos todos à cadeia. Os torturadores eram oficiais, pessoas que estavam muito satisfeitas com o que faziam.”