“Língua colonial pode se tornar instrumento da descolonização”, diz Saulo Neiva na semana da francofonia

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A semana Francofonia é um período para celebrar a língua francesa em toda a sua diversidade, nos cinco continentes. Diferentes países organizam a sua programação, com encontros para falar de literatura, exposições, projeções de filmes, concertos e ditados com premiação aos melhores alunos. Entre os quase 300 milhões de falantes de francês no mundo está o brasileiro Saulo Neiva, diretor da Agência Universitária da Francofonia (AUF) no Caribe, que conversou com a RFI do Haiti.

Por:Maria Paula Carvalho, compartilhado de RFi




Todos os anos, perto do dia 20 de março – dia Internacional da Francofonia – acontece esse momento de encontro para todos aqueles que falam, amam ou admiram a língua francesa. A Agência Universitária da Francofonia reúne mais de mil universidades, faculdades e centros de pesquisa científica em língua francesa, estando presente em mais de 100 países. A instituição, criada há 60 anos, é uma das maiores associações de instituições de ensino superior e pesquisa do mundo.

“O trabalho que a gente faz na AUF inclui cooperação entre universidades, entre estudantes e professores, mas não só isso”, explica Saulo Neiva. “A cooperação entre as universidades está a serviço do desenvolvimento dos países, do diálogo entre os povos. A promoção da língua francesa não é um fim em si”, diz.

De acordo com dados estatísticos, o Francês é a quinta língua mais falada do mundo, depois do Inglês, do mandarim, na China, do Hindi, na Índia e do espanhol. Ao todo, há 274 milhões de falantes de francês, a língua oficial em 29 países.

“Aqui no Haiti, quando eu realizo reuniões para que universidades haitianas colaborem com universidades cubanas ou dominicanas, a língua de trabalho pode ser o espanhol. Porém, ao fazer com que todas essas instituições se reúnam para promover, por exemplo, a igualdade de gênero ou a transformação digital, nós promovemos essa francofonia científica, ou seja, esse espaço em que nós construímos algo juntos e, como consequência, promovemos a língua francesa,” observa.

No Haiti, a programação inclui um concurso em torno das palavras que o Caribe trouxe para a língua francesa. Trata-se de uma parceria com o dicionário dos francófonos, em que os usuários podem contribuir para a criação de novos verbetes. “Teremos questões sobre o vocabulário que o Caribe, mais precisamente o Haiti, a Guadalupe e a Martinica trouxeram para a língua francesa, com prêmios de até € 300”, diz.

Além disso, há uma exposição com tecnologia de realidade aumentada, na Escola Superior de Infotrônica de Porto Príncipe. Com o título “Matrimônio afro-caribenho americano, a mostra valoriza artistas afro-caribenhas e afro-americanas que são retratadas com tecnologia de realidade virutal. Ao usar o celular, o visitante pode ver mais fotos e vídeos das personagens retratadas”, conta. “Outra atividade são ateliers de formação pedagógica: como usar um podcast em sala de aula, para professores de diferentes países. Ou como encontrar emprego na era digital?”, diz Neiva.

Este ano, o tema escolhido é um trocadilho: “ça (d)étonne”, uma brincadeira com os verbos com detonar e impressionar. Para Saulo Neiva, é um bom convite para redescobrir a capacidade das palavras de surpreender, encantar e fascinar. “Esse ângulo é o que desejamos trazer para reinventar essa francofonia ativa, quando as pessoas se reúnem para construir algo e a promoção da língua acontece de maneira surpreedente”, diz.

Dominante, hegemônico ou dominado 

Enquanto para muita gente, o inglês é a língua dos negócios, o francês é visto como a língua da cultura e mesmo do amor. Neiva lembra, no entanto, que além dos estereótipos, um mesmo idioma pode ser dominante, hegemônico ou dominado. “No Haiti, o francês foi, durante muito tempo, a única língua oficial. A maioria aqui fala crioulo, só quem foi à escola fala francês, que deixou de ser a única língua oficial nos anos 1980″, diz. “O francês exerce esse poder reconhecido pelo Estado, um poder hegemônico, enquanto a população usa o crioulo no dia a dia”, completa. “Já no Quebec, a situação se inverte: o francês é defendido pelas instituições, mas tem a presença do inglês muito clara”, compara, observando que o “importante é defender o plurilinguismo, pois todos podem falar vária línguas”.

Professor de literatura brasileira, Saulo Neiva já foi chefe do departamento de Português da Universidade de Clermont-Ferrand, no centro da França. Ele conta que, apesar de as trocas universitárias entre o Brasil e a França serem históricas, o intercâmbio tem diminuído ao longo do tempo. “O francês realmente não tem o espaço que ocupava nos anos 1950 e 1960 no Brasil e em outros países é igual”, afirma. Mas lembra que “no Amapá, por causa da proximidade com a Guiana Francesa, há um grande movimento do ensino do francês de maneira dinâmica. Afinal, escolhemos uma língua por necessidade, utilidade, não só pela estética, porque é a língua de Molière ou da gastronomia”, completa.

Ele lembra que o francês abre a possibilidade para os brasilerios de trabalharem com países francófonos da Europa, América e África. “O Brasil não faz parte da lista de países observadores da francofonia, como a Argentina, República Dominicana e Costa Rica. Num mundo multilateral, a participação do Brasil no conjunto dos observadores da francofonia seria interessante em termos de geopolítica”, ressalta.

A promoção da língua é considerada um dos elementos do chamado soft power. Porém, tem havido muitas críticas sobre redução dessa presença francesa no estrangeiro. “Eu acredito que o importante é a gente não ficar preocupado em promover o francês como a primeira língua estrangeira”, diz. “O inglês é um instrumento. Mesmo com a saída do Reino Unido da União Europeia há um debate se a inglês deve continuar a ser usado nas instituições europeias”, compara. “O francês não e a língua só da França, mas da Bélgica, de parte da Suíça e de vários países africanos, do Haiti, Quebec e é a partir dessa diversidade que o francês deve ser promovido”, acredita ele. 

“É uma grande lição. Afinal, uma língua que foi usada como colonial pode se tornar um instrumento da descolonização e promover a igualdade, a valorização da pesquisa, a transformação digital e a difusão de novos projetos”, conclui. 

A programação completa da semana da Francofonia pode ser consultada no endereço ttps://20mars.francophonie.org/

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