Por Joel Santos Guimarães, jornalista
Fotos: Cynthia Covezzi
Tempos de Cigarro Sem Filtro e MULAS, livros que entendo serem de leitura obrigatória, já fazem parte do acervo da Biblioteca Municipal Ateneu Ubatubense, de Ubatuba SP), que conta com um acervo de outros 20 mil livros.
Com temáticas diferentes, os autores José Maschio – Tempos de Cigarro Sem Filtro e Luiz Taques –MULAS – abordam períodos sombrios vividos pelo país, em um passado recente e, também, nesses dias atuais, em que a barbárie e o obscurantismo passaram a fazer parte do cotidiano dos brasileiros.
Esse tempo de incerteza provocado por um capitão que virou presidente e que bate continência para oito generais que fazem parte de seu ministério.
Um governo que quer voltar ao tempo dos anos de chumbo e cujo “comandante” não esconde a saudade dos 21 anos da ditadura militar. Ditadura que perseguiu, torturou e assassinou aqueles que combatiam o governo dos generais.
Relatório da Comissão Nacional da Verdade revela que a ditadura que deixou um saldo trágico de 437 mortos e desaparecidos, 6.591 militares perseguidos pelo regime e que nesse período mais de 8 mil índios foram mortos.
Vale lembrar, ainda, levantamento recente da Human Rights que mostra que 20 mil pessoas foram torturadas durante os 21 anos em que os militares comandaram o País. Bravo! Bravo!
E é justamente esse período, de uma página infeliz da nossa história, o tema central de Tempos de Cigarro Sem Filtro, o primeiro romance de José Maschio.
O livro vem sendo elogiado pela crítica e mereceu resenha em diversos jornais, sites e revistas do país.
Na Carta Capital, por exemplo, Eduardo Nunomura comenta sobre Tempos de Cigarro Sem Filtro. Na opinião de Nunomura, o livro de Maschio “é uma obra de susto, porque foi parida antes da hora. O golpe e a intervenção militar no Rio precipitaram o lançamento por uma edição de resistência”.
De acordo com Nunomura, “o eixo central da obra é o regime militar e como a ditadura fez do brasileiro um exilado em seu próprio país”.
Na resenha, Nunomura conta que o autor de Tempos de Cigarro Sem Filtro define sua obra “como literatura popular. No Brasil, a literatura, com raras exceções, é feita para os bens nascidos.Tentei falar a linguagem do povo, ‘chinelo de dedos’, e não aquela empolada dos que podem”.
Ganchão, diz aí
Afinal, por que Ganchão define a sua obra como literatura popular ou de resistência? Para saciar a minha curiosidade decidi entrevistá-lo.
Por que você define Tempos de Cigarro Sem Filtro como literatura de resistência?
Literatura de resistência porque é uma literatura engajada socialmente, que tem lado e posicionamento. Essa história de arte pela arte é confissão de omissão. E é resistência também ao mercado editorial brasileiro, que menospreza a literatura nacional.
Cite um exemplo desse menosprezo do mercado editorial à literatura nacional?
Devemos ter inúmeros Limas Barretos, inúmeras Carolinas de Jesus perdidas por esse Brasil.
Quem então é considerado relevante para as grande editoras e ,por consequência, ao mercado editorial ?
E resistência ainda também porque no Brasil só os bem-nascidos ou bem-criados possuem relevância para o mercado editorial. Resistimos a tudo isso. Somos poucos, mas somos.
Como o seu livro foi recebido pelos leitores?
Bem. Tempos de Cigarro Sem Filtro foi lançado no ano passado e a primeira edição esgotou-se. As vendas foram basicamente pela rede social (facebook, 80%), e em lançamentos.
Vem aí uma segunda edição?
A dúvida é reimpressão ou uma segunda edição.
Soco no estômago
Por sua vez, o jornalista e escritor Luiz Taques escancara, em MULAS, que acaba de sair do prelo, o tráfico de cocaína, e que faz a fortuna de alguns chefões que controlam o do tráfico de drogas país afora, não somente na região da fronteira com a Bolívia. No seu livro, Taques fala do transporte de cocaína por trabalhadores de baixa renda ou desempregados, conhecidos como mulas.
Grande parte da droga transportada pelos mulas é feita em seu próprios corpos. Ou seja, são introduzidas no ânus ou na vagina ou por meio de ingestão da droga encapsulada ou em forma de pacotes.
De acordo com um delegado da Polícia Federal, não existe um levantamento que quantifique o volume de cocaína, maconha e outras drogas, que entram e saem do país transportadas pelos mulas.
No entanto, ele acredita que, no máximo, 3% do volume de drogas que entram e saem do Brasil são feitos por mulas. A PF estima que, no Brasil, o narcotráfico movimenta anualmente algo em torno de R$ 16 bilhões
Sobre o livro MULAS, Ciça Guirado afirma, na excelente resenha que escreveu para o site Jornalismo Periférico, que a obra de Taques é um “tiro no estomago, como diria Clarice Lispector sobre a vida real”.
A íntegra da resenha:
” O livro de Taques acaba de sair a público pela editora Kan. homem vivido por aquelas bandas, Luiz descreve fronteiras: divisas geográficas entre Brasil e Bolívia, nuances finas entre liberdade e dignidade, prazeres sexuais e violências no mundo das drogas. Mulas é “um soco no estômago”, como diria clarisse lispector sobre a vida real.
Literalmente “um soco no estômago”, local do corpo humano propício para transportar cocaína. Pelo estômago morre o pai dos gêmeos. pelo estômago sua viúva é convencida a continuar o sustento da família a troco de luxo barato.
Com a bolivianinha de Puerto Suárez, o buraco é mais embaixo. Estuprada pelos policiais que apanharam sua carga no trem, ela se vinga ao transmitir HIV. Pela vagina também se carrega a droga.
Mulas são “usadas para iscas, no intuito de despistar consideráveis carregamentos de cocaína […] a bordo de voadeiras, contêineres, helicópteros ou teco-tecos – os donos dos carregamentos, de colarinho branco, em nenhuma circunstância, iam em cana” (p. 72).
Horrores da vida na fronteira. só mesmo um repórter como Taques daria conta de descrever os disparatados absurdos que revoltam o leitor. E mais não digo, porque mulas é de doer na alma.
Como disse o jornalista Edson Moraes no prefácio: “Haverá sempre um ‘mula’ permeando o vão entre a coluna social e o obituário da indigência”.
A novela está sendo vendida apenas pelo e-mail novelamulas@gmail.com
Taques, diz aí
Também entrevistei Taques que fala sobre seu processo criativo e o que o levou a escrever MULAS. Ele diz que se morasse em Brasília talvez escrevesse um livro sobre um outro tipo de mula: aquele que azeda a vida pública brasileira.
O que te levou a escrever Mulas?
Há os ‘mulas’ do tráfico de drogas e há os ‘mulas’ da política. Nasci e fui criado na fronteira do Brasil com a Bolívia, por onde passa muita cocaína, cujo destino são os grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro, e países fortes, iguais Estados Unidos, França, Inglaterra. Se morasse em Brasília, talvez eu escrevesse sobre um outro tipo de ‘mula’: aquele que azeda a vida pública brasileira.
Como disse o colunista Ricardo Cappelli, em artigo no site Congresso em Foco, “Bolsonaro é apenas a mula que fez o capital financeiro chegar ao poder. Se o animal fraquejar na travessia, trocar de montaria é sempre uma opção, desde que não mude o rumo.”
Qual é o perfil das mulas que atuam na região em que você aborda no livro? São desempregados? Trabalhadores de baixa renda que fazem esse bico para levar mais dinheiro para casa?
Como a novela MULAS é uma ficção, não tenho pesquisa ou estatística a lhe apresentar. O que eu sei é que, se o mula fraquejar, ele vai em cana. E a maioria fraqueja, ou é dedurada. Tanto é verdade que os municípios localizados ao longo da BR 262, entre Corumbá e Campo Grande, por exemplo, estão lotados de gente simples e humilde, em sua maioria, que se envolveu com o tráfico de drogas.
Os donos do trafico de cocaína e outros bagulhos ganham milhões e dificilmente vão em cana? Ou seja, quem paga a conta nesse caso são os mulas?
Digo no livro: mulas são usadas para iscas. Com certeza, servem para ludibriar grandes carregamentos de cocaína. Esses grandes carregamentos são transportados por veículos: carro, caminhão, navio, helicóptero, não por pessoas; não no estômago de um desempregado.
Parodiando o Paulo Lacerda, ex- diretor da Polícia Federal, para quem “os chefões do trafico não estão nos morros. Estão na Vieira Souto ou na avenida Paulista”. E aí, onde estão os chefões? Aqueles que realmente ganham bi/milhões?
Não se tem notícia de que poderosos traficantes de cocaína morem em Corumbá, cidade onde eu nasci e cresci. Nem em Ladário, cidade vizinha.
Você diria que os seus livros são literatura de resistência? Por quê?
Tento melhorar a linguagem literária a cada obra publicada. Os temas abordados em meus livros agradam uns leitores, mas desagradam outros. Quando escrevo não tenho em mente se estou fazendo literatura de resistência. Escrevo porque eu vivo a cavoucar a minha memória. O dia que eu deixar de cavoucar a cachola, deixarei de escrever literatura.
Fotos: Cynthia Covezzi