Livreiro conta a morte prenunciada, mas não executada de sua livraria: “vive porque nunca esteve só”

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Por Daniel Louzada, livreiro da Leonardo da Vinci (RJ) –

Saímos piores dessa, é verdade. Livrarias, as verdadeiras, servem para lembrar que não estamos condenados à derrota, contudo. Não será dessa vez o fim da nossa estirpe sobre a terra.




Na tarde de 18 de março de 2020, percebi que não havia alternativa senão fechar a Leonardo da Vinci. As perspectivas sobre o avanço da epidemia e o clima irreal vivido no país impunham a decisão imediata para preservar todos que a frequentavam. Às 17h, escrevi o comunicado nas redes sociais e chorei. Às 19h, a livraria fechou as portas sem previsão de retorno. Não foi a primeira vez em sua longa história.

No dia seguinte eu estava de volta à Da Vinci. Não existia a opção de deixar de vender porque isso significaria o fim da livraria. Ainda que com todas as dificuldades e risco soube que tudo dependia de mim naquela manhã de quinta-feira. Uma pequena livraria como a Da Vinci é um empreendimento solitário, vive da persistência do seu livreiro, é produto dos seus triunfos e também de suas fraquezas e incompletudes.

Os meses seguintes foram cheios de tarefas, a maior parte do tempo executadas sozinho. Buscar atender bem os clientes que mantinham a Da Vinci de pé, dar conta de dezenas de atividades, do financeiro à limpeza, das redes sociais ao fornecimento; pedidos por whatsapp, renegociações, cartas de aviso da proteção ao crédito, o afeto das mensagens recebidas de todo país, noites insones, o metrô fantasmagórico, pacotes por fazer, uma pilha de boletos vencidos, a quentinha, a venda 70% menor. De novo e de novo.

Dias de luta silenciosa entre o homem prático e o homem que se desespera.
Nesse período, o site entrou no ar, a venda pela internet aumentou e ainda que com grandes perdas foi possível manter algum faturamento para pagar as contas básicas e dívidas que surgiam. Dever: o verbo do tempo da mercadoria acelerada. Trabalhando no limite, percebi que devia ao mundo dinheiro, respostas, atenção.

Passei a sentir saudades de tudo. Nos momentos duros, precisei lutar contra a nostalgia. A guarda estava baixa, senti falta das pessoas que conheço e não conheço, do cheiro do café, das conversas, das interrupções, da casa cheia e dos debates, do homem que invadia a loja esbaforido oferecendo um unguento para os clientes, de vigiar o ladrão eventual.

Uma livraria sem pessoas é um lugar triste. Livrarias não foram concebidas como bibliotecas, a contribuição não ordeira do fluxo dos corpos em diálogo é seu fundamento.
Sentado na poltrona do meio da loja com a luz apagada, foram muitas as vezes em que olhei as prateleiras, cada lombada na penumbra, talvez esperando uma revelação.

Os livros nunca se moveram, nenhum mensageiro do além apareceu. Durante muito tempo esperei algo extraordinário acontecer na minha vida. Lembrei que quando eu cumpria mal os rituais em um lugar onde quase ninguém lia e tentava fingir ser outro em troca de um salário, um amigo me disse, contrariando seu hábito de poucas palavras: daqui a quarenta anos, te vejo numa livraria subterrânea, corcunda, atrás do balcão.

Tento lembrar da expressão dele no momento do vaticínio, perco o fio da memória. Livre de divisórias, e balcões, hoje ele trabalha na Faria Lima, parece que “mudando a vida das pessoas”. Ganhamos a vida, sabendo que a perdemos.

À solidão da livraria perdida no subsolo de um prédio antigo se somava a solidão das ruas desoladas do centro da cidade. Ver a Rio Branco dia após dia, sem vendedores ambulantes, livre do burburinho e das histórias intuídas de seus passantes, olhar as janelas dos edifícios e saber que não havia ninguém naquelas salas era como já estar em outro mundo.

Quatro ou cinco vezes ao sair da loja à noite, na esquina da Almirante Barroso vi um rato, um rato que passeava sempre de um mesmo bueiro a outro. Não pude deixar de pensar que éramos sobreviventes de um lugar esquecido.

Vinte e dois anos trabalhando com livros não me ensinaram tanto quanto o que vivi nos últimos meses. É a vida real que define o nosso lugar no mundo e não o que queremos parecer nos falsos espelhos que se multiplicam.

A desgraça nacional e também o excesso de conexão renovaram minha consciência sobre a necessidade dos livros. Nunca foi tão necessário ler. “O ruído não me permite existir”, disse o personagem de O silencieiro: precisamos de menos coisas e mais substância, mais sentido e menos rumor
A Da Vinci reabre em modo reduzido nesta segunda, 6 de julho de 2020, 109 dias depois de fechar; vive porque nunca esteve só.

A morte e a indecência compõem a paisagem brasileira, a racionalizada crueldade econômica e seu desastre sanitário se somam a um vírus poderoso, o antiintelectualismo.

Saímos piores dessa, é verdade. Livrarias, as verdadeiras, servem para lembrar que não estamos condenados à derrota, contudo. Não será dessa vez o fim da nossa estirpe sobre a terra.

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