Publicado em Outras Palavras –
Pesquisador realiza um forte cruzamento de dados para expor como dieta neoliberal barateou produtos de baixa qualidade e dificultou acesso a alimentos frescos, em especial nos países pobres
Percebi que havia alguma coisa muito errada com nosso sistema alimentar quando um amigo pediu um suco de uva no bar. A lata estava cheia de letrinhas que eu não entendia, e decidi vasculhar pela origem: Coreia do Sul. “Esse suco vem com pedaços de uva de verdade”, ele se justificou.
Qual era o sentido de um suco que precisava viajar dezenas de milhares de quilômetros? Não era uma questão de ufanismo: é uma questão de que um suco com pedaços de uva pode ser feito em qualquer lugar que tenha uva. No caso, o Brasil.
Aqueles 238 mL condensam simbolicamente muitas discussões. A justificativa central para a abertura de fronteiras era resolver a fome no mundo. No papel, Organização Mundial de Comércio (OMC) e coligados diziam que, sem barreiras comerciais, a comida circularia e resolveria a questão. Ou seja, se o país X tem excedente de uma coisa e falta de outra, basta exportar e importar.
Se os defensores da ideia falavam com sinceridade ou com interesses ocultos, não sabemos. Fato é que o problema da fome não se resolveu. São quase 900 milhões de pessoas, segundo a Agência das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), cerca de um sétimo da humanidade.
E, ao que tudo indica, os problemas se agravaram com a globalização de um sistema alimentar repleto de problemas. Temos 1,3 bilhão de pessoas obesas ou com sobrepeso. E a explosão nos índices nacionais de diabetes, hipertensão e câncer.
O sociólogo mexicano Gerardo Otero jogou novas luzes sobre o desmonte dos sistemas alimentares e de como isso se articula com boa parte dos maiores problemas de nossos tempos. Em The neoliberal diet. Healthy profits, unhealthy people (A dieta neoliberal. Lucros saudáveis, pessoas não saudáveis, ainda sem edição em português), o coordenador do Programa de Estudos Latino-Americanos na Universidade Simon Fraser, no Canadá, olha para os determinantes econômicos e socioculturais dos problemas agrícolas e nutricionais do século 21, exatamente um campo sobre o qual ainda pairam muitas dúvidas.
O neoliberalismo tem a inauguração simbólica nos governos de Ronald Reagan (1981-89) nos Estados Unidos e Margaret Thatcher (1979-90) no Reino Unido. A ideia central é de que o livre mercado deve ditar as regras e que as próprias relações de oferta e demanda darão conta dos problemas sociais e econômicos.
“A solução mais importante tem que vir do Estado, com uma regulação forte. O Estado é um ator social, tem um impacto na sociedade em seu conjunto”, ele disse em uma conversa que tivemos por telefone. “O discurso dominante agora é o contrário. De que a solução tem que vir pelo consumo, supondo que basta que as pessoas tenham capacidade para decidir. Eu entendo que a maior parte das pessoas não tem capacidade econômica para decidir.”
Essa é a questão central para ele: sem uma mudança profunda e sistêmica, a maior parte das pessoas não tem e não terá possibilidade de escolha. É a contramão do argumento central da indústria de ultraprocessados no Brasil e no mundo para frear a ação do Estado. Diz-se que precisamos dar informações para que cada um possa escolher. O trabalho de Otero é mais um a derrubar essa tese.
O que perpassa o livro é a obstinação com o levantamento de informações. O autor cruza vários bancos de dados públicos para defender a ideia de que o neoliberalismo nos trouxe até aqui. Uma pena que os gráficos feitos pela editora, University of Texas Press, pequem por uma apresentação sofrível, que por vezes atrapalha a compreensão.
Entre as conclusões, vale um momento de destaque para o Brasil, líder na inflação de alimentos básicos ao longo desse século. Um movimento que todos nós sentimos na feira, nos mercados, nos armazéns. Um movimento que a apresentadora Ana Maria Braga fez questão de eternizar em 2013 usando um colar de tomates. “Estou usando uma joia”, declarou.
A global parece ter esquecido do assunto, mas os preços dos alimentos continuaram subindo. Se o tomate a R$ 8 incomodava, a mandioquinha a R$ 10, o pimentão a R$ 12 e as verduras cada vez mais caras e o feijão se tornando inacessível não parecem entrar nas preocupações da emissora responsável pela campanha O Agro é Pop.
Afinal, para isso seria preciso mostrar que o agro é o centro dos problemas. Para Gerardo Otero, quatro fatores conformam a dieta neoliberal: as multinacionais do agronegócio, a biotecnologia, o Estado e os supermercados. Esse último fator é o menos abordado pelo livro. Temos um texto recente sobre o ambiente alimentar de supermercados, de modo que podemos nos concentrar nos outros três.
Enquanto o Brasil figura no topo da inflação, Estados Unidos e Canadá ficam no pé. Para o autor, um sinal de como o modelo agrícola adotado por aqui, calcado em exportação acima de tudo, é um tiro no pé: os dois países do Norte seguem a concentrar a produção de boa parte do que consomem.
Regimes
Otero identifica três grandes regimes alimentares nos últimos dois séculos. O primeiro, vigente do século 19 até a 1ª Guerra Mundial (1914-17), era marcado por certa liberalização. O segundo, fortalecido após a 2ª Guerra (1939-45) e em vigor até os anos 1970, tinha como centro uma forte atuação do Estado na criação de mercados nacionais de produção, comercialização e distribuição.
E o terceiro é esse em que vivemos hoje, sob o neoliberalismo. A ideia é de que não faria mais sentido que o Estado atuasse como regulador dos sistemas alimentares, que deveriam ser deixados a uma espécie de “autorregulação” empresarial. Essa noção está no centro da crítica de Otero: para ele, não é verdade que exista um Estado mínimo, como defendem os cabeças do neoliberalismo, e sim uma neorregulação. É um Estado que passa a criar medidas regulatórias que favorecem poucas corporações enquanto se retira da proteção social garantida nas décadas anteriores.
Para a América Latina, esse pacote teve algumas consequências:
– Abertura unilateral de fronteiras e dos mercados agrícolas
– Privatização ou desmonte das estruturas de crédito, infraestrutura e assistência técnica
– Fim (ou enfraquecimento brutal) da reforma agrária
– Orientação da agricultura para a exportação, em lugar de privilegiar o mercado interno
Não é coincidência que ao longo dessas décadas o agronegócio tenha cunhado sua face contemporânea e se tornado mais e mais forte. Falamos recentemente sobre uma tese de doutorado que repassa essa formação política do setor no Brasil, a ponto de ser o fiel da balança (ou do desbalanço) de qualquer governo.
De maneira geral, é isso que Otero constata: não só o agronegócio ganhou mais força. As corporações se tornaram donas do sistema alimentar. No plano interno, os Estados deixaram rolar fusões, aquisições, fechamentos. Olhando para os Estados Unidos, no setor de supermercados uma única empresa, o Walmart, controla um terço do mercado. Em cerveja, a Anheuser-Busch InBev fica com 46,4%. Pesticidas, sementes, soja, fast food: pouquíssimos controlam tudo.
A vanguarda do atraso
E todos estão ligados à biotecnologia, em maior ou menor grau. Para Otero, essa fé na manipulação genética como solução para os problemas alimentares é um vetor central – e inabalável – da ideologia neoliberal. Ele vê nos transgênicos a continuidade do paradigma agrícola “moderno”, que enxerga na agricultura familiar um atraso.
Nesse sentido, o terceiro regime alimentar é marcado pela tensão entre soberania e globalização corporativa. Quanto mais essa avança, pior para nós, na interpretação de Otero. É aqui que ele oferece um dos cruzamentos de dados mais potentes do livro. Ele apresenta como a OMC foi ativa na campanha pela derrubada das fronteiras nacionais alegando, centralmente, que esse era um passo necessário para garantir alimentos de qualidade para o mundo todo.
Enquanto os Estados menos poderosos abriram as fronteiras, os países ricos mantiveram pesados subsídios sobre a produção agrícola. Esse processo deixou os agricultores familiares obrigados a competir numa situação de absoluta desigualdade, e sob parâmetros muito diferentes: enquanto um sistema está voltado à produtividade acima de tudo, o outro observa questões como qualidade, adaptação ao clima local e consumo próximo ao local de produção.
Um dos resultados óbvios é a migração que tanto incomoda líderes conservadores do presente. Então, se eles quiserem fazer algo pelos outros, estimular a agricultura nos países que foram destroçados é uma ótima ideia. Melhor do que erguer muros.
O momento de derrubada das fronteiras representa a perda do controle nacional sobre os preços dos alimentos, que passam a ser regidos globalmente. Em vários casos, alimentos básicos são transformados em commodities negociadas em bolsas de valores e, portanto, sujeitas a variações bruscas. Se antes o preço milho era regido pelos baixos salários de uma determinada nação, de repente explode sem que os salários tenham como acompanhar esse movimento. O resultado é justamente a fome que a OMC jurava combater.
Os dados de Otero mostram que mesmo variações iguais têm efeitos muito diferentes quando se olha para pobres e ricos.
O caso emblemático é o Acordo de Livre Comércio da América do Norte, o Nafta, firmado entre México, Canadá e Estados Unidos em 1994. “O México foi o maior entusiasta das medidas neoliberais. Pelo fato de o vizinho do Norte ser o país mais poderoso, isso marca o destino do México de muitas maneiras”, comenta o professor.
Já falamos sobre o caso do México no começo deste ano. E comentamos sobre um risco que fica ainda mais explícito com o livro de Otero: o alinhamento automático aos Estados Unidos, desejo de Jair Bolsonaro, pode ser trágico. Na visão do autor, o México é um espelho através do qual todos os países que estão nesse caminho podem olhar o futuro. E esse futuro não é legal.
De cara, em poucos anos o México viu sua agricultura tradicional devastada. A força de trabalho ligada à agricultura passou de 19% da população economicamente ativa em 1994 para 13,4% em 2011. Ironicamente, boa parte dessas pessoas cruzou a fronteira para trabalhar em condições precárias no setor rural, produzindo alimentos que acabarão nas mesas dos mexicanos.
A pobreza no país não retrocedeu e, em vários momentos, piorou. A precarização laboral tornou-se a norma para tentar receber empresas dos Estados Unidos interessadas em redução de custos – mas boa parte delas encontrou condições ainda mais degradantes em outros lugares do mundo.
A disparidade é gritante. Entre a assinatura do Nafta e 2012, o Canadá foi de 21ª maior renda per capita do planeta a 9ª. Os Estados Unidos, de 9ª para 10ª. E o México, de 53ª para 61ª.
Um espirro do Tio Sam é fatal
E, não menos importante, o México renunciou à soberania alimentar. Em 1985, quatro das 25 culturas alimentares mais importantes tinham um patamar de importação superior a 20%. Essas quatro culturas respondiam por 8,49% da ingestão diária de calorias. Em 2007, antes da crise nos Estados Unidos, eram 11, chegando a 56,29% da dieta.
Em 2014, a inflação de alimentos no México foi três vezes maior que a dos parceiros de Nafta. E essa inflação é muito desigual. Como mostra Otero, os alimentos engolem hoje uma fatia muito maior do orçamento dos 40% mais pobres.
O caso emblemático é o do milho, central na história e na cultura do México. Após a abertura, o tradicional milho branco, base para a produção da tortilla, item presente em qualquer refeição, passou a conviver com o milho amarelo dos Estados Unidos, muito mais barato e de pior qualidade.
Enquanto o México agora importa itens essenciais, Estados Unidos e Canadá compram do parceiro frutas, legumes e verduras que apenas complementam a dieta e, no geral, estão voltados a um mercado de classes média e alta. Em torno de 40% das importações de produtos estadunindenses pelos mexicanos diz respeito a alimentos básicos. Na contramão, alimentos in natura ficam com 2% daquilo que os Estados Unidos buscam no vizinho.
Ainda assim, o fortalecimento desse mercado exportador de frutas fez com que um dos elementos fundamentais da cultura mexicana também se tornasse mais caro internamente. Talvez a Ana Maria Braga de lá tenha feito um colar de abacaxi.
A ideia de que todo mundo se deu bem não para em pé. Apenas 20 mil das sete milhões de propriedades agrícolas do México estão envolvidas com exportação. Dessas, 300 concentram 80% das vendas ao exterior.
Em contrapartida, o açúcar se tornou muito mais barato. E aqui a gente passa do México para o mundo. Se o trigo e o açúcar marcaram onipresença desde o século 19, a chegada do terceiro regime alimentar faz da dupla um trio: usando mais um cruzamento de dados, Otero mostra como o consumo de óleos explodiu de maneira geral – com Brasil e Turquia à frente.
Óleos que, somados a trigo e açúcar, são a base de produtos comestíveis ultraprocessados. São a base de formulações que só têm alguma cara de alimento se somadas a aditivos que dão cor, textura, sabor. Óleos que nascem justamente dos cultivos que ganharam escala gigante com a biotecnologia: milho e soja. No mundo, o consumo desses óleos avançou 148% entre 1961 e 2011.
E, aqui, The neoliberal diet mostra que não só a desigualdade entre países se tornou maior. A desigualdade interna só fez agravar nas últimas décadas. Olhando para os Estados Unidos, ele mostra que 12,5% da população estava em insegurança alimentar em 2016. Os gastos com obesidade chegam a quase US$ 200 bilhões ao ano. Mas é uma situação que afeta sobremaneira negros e latinos. A obesidade é, assim, uma nova face da discriminação.
Otero evidencia como é cada vez mais difícil aos estratos mais pobres ter acesso a alimentos básicos. Na década de 1970, os gastos com vegetais desses grupos eram proporcionalmente maiores que nos anos 1990, e desde então a situação só piorou. Na visão do professor, não é que essas pessoas tenham desistido de consumir alimentos frescos para priorizar fast food e ultraprocessados: elas estão comprando o que dá.
Tem saída?
Para demonstrar a perda de soberania dos países, Otero desenvolveu o indicador Risco Dietético Neoliberal, no qual cruza os determinantes socioculturais da desigualdade alimentar. Todos os oito países avaliados tiveram um aumento do índice entre 1985 e 2007, o que significa que todos, de alguma maneira, se tornaram mais dependentes e estão numa situação mais insegura. Mas há uma diferença grande entre pobres e ricos.
O ponto que Otero quis explorar com o índice é que o problema do sistema alimentar não tem a ver com estilos de vida ou escolhas individuais: não é que as pessoas de repente tenham perdido o controle coletivamente, aos bilhões, e passado a comer demais. Ou que os agricultores tenham ficado com preguiça de cultivar a terra. A questão é estrutural e, portanto, defende o autor, só pode ser resolvida pelo Estado.
Ele é cético quanto a uma agenda de medidas recentes voltadas a desestimular o consumo de ultraprocessados. Alertas nos rótulos e impostos sobre refrigerantes têm sido debatidos e adotados em alguns países. Para o professor, algumas dessas medidas podem acabar agravando desigualdades se não forem acompanhadas de mudanças estruturais que possibilitem aos pobres acessar alimentos frescos. “Não são medidas ruins. Mas não são a solução. Talvez sejam um pequeno avanço.”
No livro, ele defende que em vez disso o orçamento público seja redirecionado, priorizando itens básicos de consumo e retirando subsídios de commodities como milho e soja. No campo, propõe estímulos à agricultura familiar para criar um modelo baseado em pequenos e médios produtores. No caso do México, isso permitiria incentivar a volta de milhões de pessoas que emigraram. No Brasil, talvez a gente não precisasse tratar um colar de tomates como joia.
Ficha técnica
The neoliberal diet. Healthy profits, unhealthy people
University of Texas Press
Primeira edição: 2018
238 páginas