Por Leila Kiyomura,do Jornal da USP, publicado em Jornal GGN –
A artista e professora da USP Giselle Beiguelman lança livro sobre a estética da memória
O livro Memória da Amnésia: Políticas do Esquecimento é lançado pela professora Giselle Beiguelman no momento em que a tragédia do incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro completa um ano. A artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP apresenta em livro publicado pelas Edições Sesc um projeto inusitado, propondo uma reflexão sobre o direito à memória, em contraposição às ações e políticas do apagamento do passado. “A cultura, e seus orçamentos ínfimos, são uma triste recorrência política. Desse ponto de vista, o incêndio do Museu Nacional é a triste metáfora dos nossos impasses”, escreve Giselle, que também é colunista da Rádio USP (93,7 MHz).
O livro reúne um conjunto de ensaios textuais e visuais no campo das estéticas da memória. “Todos os capítulos, com exceção do último, que é uma reflexão sobre o incêndio do Museu Nacional, orbitam em torno de projetos realizados por mim em diferentes contextos”, explica Beiguelman. “São trabalhos experimentais e de pesquisa que se desenvolvem por meio de intervenções artísticas no espaço público e nos espaços informais.”
O título Memória da Amnésia é também o nome de uma intervenção apresentada entre dezembro de 2015 e abril de 2016, que aborda as políticas públicas. “O foco principal da intervenção era o processo de mudança de monumentos de lugar, o que culmina no seu ‘desterro’ em depósitos, duas questões recorrentes da história urbana da cidade de São Paulo”, comenta.
O tsunami de informações tem o esquecimento como efeito colateral. Não é isso o que sentimos quando, na inspeção arqueológica de gavetas e armários, encontramos disquetes obscuros?”, escreve o professor Agnaldo Farias, na apresentação do livro
Na apresentação do livro, Agnaldo Farias, também professor da FAU, observa que hoje nem o tempo é mais o que era. “Antigamente, reconhecia-se o passado como algo que dizia respeito ao que havia acontecido, o presente ao que estava acontecendo e o futuro ao que iria acontecer”, argumenta. “A presumida linearidade do tempo explodiu, e a temporalidade parece estruturar-se numa nuvem de fragmentos com espessuras e velocidades distintas e em direções desencontradas. Sobre esse caráter essencialmente contraditório, a autora lembra que a mesma cidade onde foi inaugurado o Museu do Amanhã, instituição que quer nos fazer crer que o amanhã é hoje, transformou em cinzas o Museu Histórico Nacional, um patrimônio de 20 milhões de itens. Rasurou irreversivelmente uma parte significativa do passado não só brasileiro e português, mas da humanidade.”
Farias assinala que, apesar da grande produção de registros, nunca foi tão difícil ter acesso ao passado recente. “O tsunami de informações tem o esquecimento como efeito colateral. Não é isso o que sentimos quando, na inspeção arqueológica de gavetas e armários, encontramos disquetes obscuros?”
O livro tem cinco capítulos. O primeiro, “Beleza compulsiva tropical”, traz uma intervenção feita na 3ª Bienal da Bahia, em 2014, no Arquivo Público da Bahia, criado em 16 de janeiro de 1890 e considerado o segundo mais importante do País. Nesse projeto, a autora mostra o casarão semiarruinado que guarda documentos que vão do século 17 ao 20. Conta que o intuito do projeto não foi adotar uma atitude de denúncia diante do abandono do patrimônio histórico. “O que procurei fazer foi tensionar não só as relações entre as artes e os lugares da memória, como também entre os sistemas públicos de memória. Contemplando a linha de cemitérios populares e as paredes de jazigos provisórios que se avistam do arquivo, uma pergunta se impunha: afinal, por que arquivos e cemitérios são tão parecidos?”
O segundo capítulo é “Memória da amnésia”. “Fruto de um trabalho feito ao longo de quase dois anos, incluiu o mapeamento dos monumentos nômades de São Paulo e o traslado de um conjunto de monumentos ocultados em depósitos municipais, alguns há 80 anos fora do espaço público, para o interior do Arquivo Histórico de São Paulo, onde ficaram expostos, deitados, por quatro meses.”
As coisas de hoje são produzidas em uma lógica de reprogramação constante, como dados para serem manipulados e não mais como objetos.”
“Já é ontem?” é a questão do terceiro capítulo. Essa obra, segundo Giselle, resultou da videoinstalação Cinema Lascado-Perimetral, apresentada em 2016, e no ensaio visual que traz linguagens de corrupção de códigos de imagens. “Procuro dar conta de uma estética capaz de registrar um processo das transformações tão intensas pelas quais passaram o Rio de Janeiro e o Brasil nos últimos anos.”
O ensaio é um panorama multifacetado dessas transformações. “As coisas de hoje são produzidas em uma lógica de reprogramação constante, como dados para serem manipulados, e não mais como objetos, a fim de serem infinitamente consumidas e reconsumidas. Esse sistema responde bem a uma cultura incapaz de conviver com o envelhecimento, a corrosão dos materiais, as asperezas do que é natural.”
Em “Museus das perdas para nuvens de esquecimento” – o quarto capítulo -, o leitor se depara com O Livro Depois do Livro, uma das primeiras obras de net art, que incita discussões sobre o futuro da memória no tempo das nuvens computacionais.
O último capítulo lembra o incêndio do Museu Nacional. “O que se perdeu foi muito mais do que o prédio e seu acervo. Subtraiu-se um pedaço do conhecimento que estava reservado também às próximas gerações. Não só do Brasil e de Portugal, mas do mundo.”
Memória da Amnésia: Políticas do Esquecimento, de Giselle Beiguelman, Edições Sesc, 256 páginas, R$ 95,00.