Palco da Cúpula da Amazônia, capital paraense despeja resíduos em aterro condenado onde vizinhança denuncia impactos na saúde e no meio ambiente
Por João Paulo Guimarães, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Caminhões despejam resíduos no Aterro de Marituba: lixo de Belém provoca problemas de saúde em moradores vizinhos (Foto: João Paulo Guimarães)
Há dois anos, o pequeno Kenneth Resende foi levado às pressas para a UPA (unidade de pronto atendimento) de Marituba, na Região Metropolitana de Belém, com uma crise respiratória que deixou os pais apavorados. Não foi a única vez: saudável nos primeiros anos de vida, o menino voltou a necessitar de atendimento por sentir dificuldades de respirar e sofrer com náuseas e vômitos. “É muito sofrimento. É uma doença que eu ficava todas as noites. E ia pro hospital todos os dias: me dá muito enjôo. Esse cheiro é muito ruim”, conta Kenneth, hoje com oito anos, que faz questão de dar seu depoimento durante a entrevista dos pais ao #Colabora.
O cheiro “muito ruim” vem do Aterro Sanitário de Marituba recebe aproximadamente 480 mil toneladas de resíduos por ano, 75% vindos da vizinha Belém, que está no centro dos debates ambientais: sedia a Cúpula da Amazônia esta semana e já está anunciada como sede da COP30 (a Conferência do Clima da ONU), em 2025 – a homologação será na COP28, em dezembro. A capital do Pará ainda não sabe qual o destino vai dar ao seu lixo já o aterro de Manituba está condenado ao fechamento pela Justiça exatamente pela emissão de gases tóxicos, que são alvos de queixas desde o começo do funcionamento pleno da Central de Processamento e Tratamento de Resíduos de Marituba (CPTRM). “Já foi comprovado que esse gás é prejudicial. Pode dar problemas respiratórios, cardíacos; pode dar AVC. Esse gás sulfídrico no ar já foi constatado. Um pesquisador que veio aqui passou mal e relatou isso no Ministério Público”, conta Karen, mãe de Kenneth – eles moram no bairro Santa Lúcia, onde o aterro foi instalado em 2015.
É só ir na UPA ou na emergência para ver o que está acontecendo quando está fedendo muito. É pressão alta, enjôo, princípio de infarto, dor de barriga, falta de ar, diarreia, mancha no pulmão
Jacimar da Silva e Silva
Dona de casa e moradora de Marituba
As queixas dos moradores de Marituba, município de 110 mil habitantes, vêm pelo menos desde 2017, quando promoveram uma série de manifestações para protestar contra o mau cheiro, as emissões de gases e a contaminação dos cursos d’água nas vizinhanças. “Todos os dias, eu acordo e tenho que ir pro banheiro pra vomitar porque eu não aguento o odor. Os igarapés daqui não prestam mais; antigamente a gente podia tomar banho, mas agora dá medo”, conta Adriana Melo, dona de uma lanchonete no bairro, que tem enfrentado problemas no seu comércio. “Até pra trabalhar com comida não está dando certo porque quem é que vai querer comprar comida num lugar que fede a carniça?”, desabafa.
Até 2015, os resíduos de Belém e outras cidades da Região Metropolitana eram despejados no Lixão de Aurá, bairro do município de Ananindeua, bem perto da divisa com a capital do Pará. O Lixão era uma bomba tóxica: os resíduos sem qualquer tratamento ameaçavam a saúde dos moradores da área e de centenas de catadores que tiravam seu sustento do lixo, além de contaminar o meio-ambiente. Em 2013, as prefeituras de Belém, Ananindeua e Marituba, responsáveis por quase a totalidade do lixo do Aurá, assinaram um termo de ajustamento de conduta e contrataram uma empresa para construir e gerir o aterro sanitário, instalado no bairro Santa Lúcia. A aparente solução virou uma transferência do problema.
Estudos técnicos apontaram a emissão de gases tóxicos e a contaminação de mananciais no entorno do aterro. “Fizemos medições e registramos concentrações de gás sulfídrico acima dos níveis que a empresa relatou que teria, acompanhado também de concentrações de metano. Sentimos cheiro forte, tinha gás sulfídrico e tinha também altas quantidades de metano. Significa que esse gás está vindo do aterro sanitário porque quem produz metano nessas concentrações é só o aterro”, aponta o físico Breno Cesar de Oliveira Imbiriba, professor da Faculdade de Meteorologia da Universidade Federal do Pará, que promoveu um estudo sobre o ar da região com outros pesquisadores da Ufpa. Parecer do Instituto Evandro Chagas, vinculado ao Ministério da Saúde, constatou altos índices de benzeno, arsênio e mercúrio em cursos d’água, próximos ao aterro.
É um odor nauseante. Imagina você ficar meia hora sujeito a esse odor. Se você estiver dormindo e aquele cheiro começar e entrar na sua casa, você vai acordar. Eu não conseguiria morar em um lugar como esse
Breno Imbiriba
Pesquisador e professor da Ufpa
Os pareceres científicos só confirmam o que os vizinhos do aterro vêm sofrendo. “É só ir na UPA ou na emergência para ver o que está acontecendo quando está fedendo muito. É pressão alta, enjôo, princípio de infarto, dor de barriga, falta de ar, diarreia, mancha no pulmão”, afirma Jacimar da Silva e Silva, 45 anos. Foi na UPA, passando mal, que Jaci encontrou a vizinha Karen, que havia levado Kenneth para ser atendido eu uma de suas crises respiratórias: preocupadas, elas começaram a organizar o grupo Donas de Casa à Luta, mais um para protestar contra os problemas provocados pelo aterro sanitário. “A gente criou uma secreção que nunca acaba; e é dor de cabeça direto. Hoje, não tem um horário específico pra feder, mas, quando chove, o odor sobe pior. Quando a gente começou a fazer as manifestações em frente à empresa, o fedor deixou de acontecer naqueles horários certos, mas é todo dia”, relata Karen.
Jaci, que nunca havia sofrido problemas pulmonares, agora sofre com crises respiratórias. Como Adriana, a dona da lanchonete, que descobriu uma mancha no seu pulmão quando fazia exames para uma cirurgia na vesícula. “Fui parar na emergência com dores terríveis nas costas: fizeram um ultrassom e descobriram um problema no pulmão”, lamenta, culpando os gases do aterro sanitário. “Ontem eu fui a Águas Lindas (bairro da vizinha Ananindeua). Quando cheguei aqui de volta, na rua principal, já não aguentava mais o cheiro”, conta a comerciante.
Também comerciante, dona de uma mercearia no bairro, Maria de Nazaré Soeiro, 31 anos, conta que a filha recém-nascida – Maria Emanuele. de 2 meses – passa mal constantemente, com enjoos que extrapolam o normal em uma criança recém nascida. “Às vezes a gente se sente preso dentro de casa quando começa o cheiro forte. Tem que se trancar pra não sufocar”, desabafa Nazaré.
Metano, dióxido de carbono e gás sulfídrico
Foram as seguidas reclamações dos moradores que levaram o professor Breno Imbiriba, que já havia estudado o Lixão do Aurá, a começar a pesquisar os impactos da operação do aterro sanitário de Marituba. De acordo com os pesquisadores, a liberação de gases tóxicos, como o metano (CH4) e o dióxido de carbono (CO2), além do sulfeto de hidrogênio conhecido também como gás sulfídrico (H2S), produzidos durante o processo de decomposição dos resíduos sólidos depositados no local, além de contribuírem para o efeito estufa e o aquecimento global, representam uma ameaça direta à saúde da população. “Todo aterro sanitário produz dois gases basicamente que são o metano e o dióxido de carbono, gases de efeito estufa. Nós fizemos duas campanhas longas para determinar o gás no ar da região e fizemos medições na chuva também porque a chuva potencializa os episódios de odor. Observamos, o gás sulfídrico também assim como os episódios de metano”, explica o professor da Ufpa.
O estudo de Imbiriba tinha o objetivo de saber mais sobre o transporte desses gases pela atmosfera, assim como a abrangência do seu impacto. Inicialmente, foi feita uma pesquisa de percepção da população em Marituba, onde uma equipe da Ufpa fez um estudo qualitativo por entrevistas. Após essa primeira etapa, foram realizadas medições de metano com um analisador de metano, equipamento disponibilizado pela Ufpa para a observação de forma empírica e em campo. De acordo com o pesquisador, os resultados foram inconclusivos, mas o Ministério Público disponibilizou equipamento adequado para medir os níveis de gás sulfídrico que seria mais odorífico e mais preocupante.
O lixão é só problema para nós: é problema respiratório, é falta de ar, é dor de cabeça, é coceira pelo corpo. O cheiro de chorume é muito forte. Quando chove e venta é horrível, precisa fechar as janelas para aguentar. O cheiro desse lixão é insuportável
Edilson Alves
Aposentado e morador de Marituba
A primeira campanha longa para a medição de gases foi feita no Conjunto Albatroz, no bairro Santa Lúcia, por um período entre as 16h da tarde e as 06h da manhã seguinte. “Ocorreram vários episódios onde sentimos o odor forte que é desagradável, fétido e enjoativo evidentemente. Eu senti várias vezes o cheiro. É um odor nauseante. Imagina você ficar meia hora sujeito a esse odor. Se você estiver dormindo e aquele cheiro começar e entrar na sua casa, você vai acordar. Eu não conseguiria morar em um lugar como esse”, desabafa o pesquisador, solidário aos vizinhos do aterro.
As duas campanhas de medição serviram para avaliar o impacto na região. “A gente estimou que as pessoas estão sujeitas a esse odor de duas a três horas por dia, ou seja, 10% do dia dessas pessoas é sob o odor fétido. No caso do gás sulfídrico, ele é considerado nocivo em certas concentrações mais altas do que observamos – em locais com concentrações mais altas, de mineração ou extração de petróleo, ele pode até matar. Mas as concentrações que a gente viu aqui, que é por volta de 0,5 parte por milhão, ele não causa esses efeitos. Porém já existem vários estudos mostrando problemas em pessoas expostas a baixas concentrações de gás sulfídrico ao longo de muitos anos”, alerta o professor Imbiriba. “É possível ocorrerem problemas de saúde oculares, respiratórios, asma, problemas bioquímicos. É a situação aqui: uma dosagem baixa, mas que não é insignificante”, explica.
Toneladas de lixo sem destino
Esse acúmulo de protestos e evidências deflagrou uma crise sanitária e ambiental que foi agravada, em 2018, pelo anúncio da Guamá Tratamento de Resíduos, empresa responsável pela operação, de que iria fechar o aterro sanitário em maio de 2019. Acossada pelas cobranças dos promotores de Marituba e de Belém e pelas queixas dos moradores, a Guamá alegou inadimplência das prefeituras para o fechamento. Em 2017, operação da Polícia Civil e do Ministério Público chegou a resultar na prisão de diretores e no bloqueio de bens do grupo empresarial, dentro de uma investigação sobre crimes ambientais.
Apesar da ameaça, a Central de Processamento e Tratamento de Resíduos (CPTR) de Marituba não fechou. Atendendo às prefeituras, que não tomaram providências para criar uma alternativa ao aterro sanitário para despejar seu lixo, a Justiça do Pará determinou o adiamento do fechamento por quatro meses. Mas, em julho, após audiência de conciliação, os três municípios e a Guamá firmaram um acordo – com cláusulas financeiras e ambientais – que prorrogou o funcionamento do aterro de Marituba por mais dois anos; o novo prazo final passou a ser 30 de junho de 2021. De acordo com a promotora Elaine Moreira, que acompanha o caso, nem a empresa tomou as providências previstas nem as prefeituras envolvidas cumpriram a maior parte dos termos do acordo, com destaque para a indicação de um novo local para a destinação dos resíduos produzidos na Grande Belém.
Menos de um mês antes do fim do prazo, prefeituras e empresa conseguiram novo adiamento. E, em agosto de 2021, o desembargador Luiz Gonzaga da Costa Neto, da 2ª Turma de Direito Público do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA), homologou novo acordo proposto agora pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), a Procuradoria Geral do Pará, os municípios de Ananindeua e Belém e a Guamá com novo prazo para o fechamento do aterro sanitário: 31 de agosto de 2023. O governo estadual ficou encarregado de coordenar ações com os municípios para encontrar solução para o destino final do lixo.
Dois anos se passaram e muito pouco aconteceu. A Guamá assegura que toma todas as providências para mitigar o cheiro que incomoda os moradores e refuta acusações de que o chorume tenha contaminado rios da região. A empresa acrescenta que cumpre as legislações municipal. estadual e federal. Para a promotora Eliane Moreira, de Marituba, as prefeituras vêm sendo omissas na solução do problema do lixo e o próprio Tribunal de Justiça do Pará não tem punido efetivamente empresa e gestores municipais: o Ministério Público tentou, sem sucesso, transferir o caso para a esfera federal. Sem acordo entre os municípios e o governo do estado, a Prefeitura de Belém publicou em 12 junho, – depois de dois adiamentos e a menos de 50 dias do fechamento do aterro – edital de licitação para a escolha de uma empresa para gestão de resíduos – da coleta do lixo a um novo aterro sanitário. O resultado da licitação do lixo está suspenso pela Justiça, mas a prefeitura recorreu. E agora tenta uma prorrogação do acordo até o fim do ano.
Os Diálogos Amazônicos começaram sexta (4/8) em Belém e os chefes de estado de oito países estarão reunidos na capital paraense nesta terça (8) e quarta (9), sem que a prefeitura do município, que despeja quase mil toneladas de resíduos por dia no Aterro de Marituba, saiba o que vai fazer com seu lixo depois de 31 de agosto – como também não sabem as prefeituras de Ananindeua e da própria Marituba. Enquanto isso, a pouco mais de 20 quilômetros do Hangar Centro de Convenções da Amazônia, sede dos debates ambientais, os moradores do Santa Lúcia seguem com sua rotina de sofrimento. “O lixão é só problema para nós: é problema respiratório, é falta de ar, é dor de cabeça, é coceira pelo corpo. O cheiro de chorume é muito forte. Quando chove e venta é horrível, precisa fechar as janelas para aguentar”, lamenta o aposentado Edílson Alves que nem usa a palavra aterro. “O cheiro desse lixão é insuportável”.