Por Carlos Eduardo Alves, jornalista
Escrevo dilacerado. Morreu hoje (10 de janeiro) Lúcia Boldrini, a minha amiga mais próxima. O que dizer da bonitona, que era como eu a chamava? Muita coisa.
A Lúcia foi a pessoa mais culta que conheci na vida. Sua biblioteca tinha milhares de livros (acho que 5 ou 6 mil), quase todos lidos. Mas isso era um detalhe. A bonitona era foda demais. A inteligência da Lúcia era descomunal, avassaladora. Os comentários dela, sempre certeiros e mordazes. Em segundos, resumia uma questão complexa com poucas e definitivas palavras. Era um fenômeno.
Como jornalista, a Lúcia era dona de texto impecável e uma editora com olhar de repórter, sempre buscando o fundamental que muitas vezes passara batido por outros profissionais.
Conheci a Lúcia na Redação da Folha mas nossa relação quase sempre era de “oi”, “tudo bem”? Curiosamente, foi através do FB e da paixão de ambos pelo futebol que nos aproximamos, acho que perto ou na Copa de 2014. A partir dali, não nos largamos.
Como quase toda pessoa brilhante, a vida da bonitona não era linear. Lia demais, comia irregularmente, trabalhava como insana nos horários mais loucos, mais exatamente de madrugada, para completar o orçamento apertado. De tarde, jornal. Ela adorava a loucura de Redação e ficava escandalizada quando eu dizia que não tinha saudade daquilo.
Há um ano, a bonitona sofreu um AVC devastador, que paralisou totalmente seu lado esquerdo, mas manteve intacto o lado cognitivo. Um ano presa na cama de uma clínica de reabilitação. No começo, quando ela operava o quase milagre de mandar mensagens por zap, recebia diariamente opiniões sobre política daqui e da Argentina. A inteligência descomunal dera um drible no AVC.
O tempo foi passando e ela ia conseguindo alguns avanços até que ocorreu uma terrível pneumonia bronco-aspirativa. A partir daí, não conseguia mais digitar, mas resistia esperando a volta da amada filha e do netinho, que estavam residindo no Exterior. Os olhos da bonitona brilhavam, nas últimas visitas, quando relatava como era o neto.
A Lúcia me ajudou bastante no período mais difícil que passei na vida. Um grupo de amigos e eu sempre cuidávamos para que ela recebesse ao menos uma visita por dia. Cumpri minha
obrigação prazerosa durante todas as semanas.
Descobri que ela gostava de “rosquinha para roer tomando café”, tortas e chocolate branco, que adorava. Muito pouco a satisfazia perto do oceano que merecia. Os amigos não faltaram com a bonitona de vida reclusa.
No final, fica uma tristeza inevitável por não ter tido tempo para cumprir a promessa de levá-la, após a alta que não chegou, para conhecer lugares próximos ao meu apartamento que ela não conhecia, como uma padaria artesanal estilosa e uma sorveteria de bairro mantida por um casal de velhinhos em pleno Baixo Augusta.
Está difícil e imaginar que amanhã (11 de janeiro) darei o último tchau para a Lúcia. Me provoca mais lágrimas. Poxa, bonitona, a gente não cumpriu nem metade das nossas pautas para mudar o mundo. Muita força para a Ângela Boldrini, a filha que mesmo em Londres organizava a vida hospitalar e de saúde da Lúcia, e para a comadre dela, Ângela Martinelli, que praticamente abriu mão de sua vida para cuidar da Lúcia no último ano.
A tristeza é a maior desde que mãe e pai foram embora, mas encontro um motivo para o fim da vida terrena da Lúcia Boldrini: tava faltando inteligência no céu e chamaram a bonitona. Vá em paz, minha eternamente querida.