Por Nirton Venancio, cineasta, roteirista, poeta, professor de literatura e cinema
“Na minha memória – tão congestionada – e no meu coração – tão cheio de marcas e poços – você ocupa um dos lugares mais bonitos.”
– Trecho da carta que Caio Fernando Abreu escreveu ao poeta, pintor e escultor Oracy Dornelles, em 12 de janeiro de 1982.
Eles moraram na mesma rua, em Santiago do Boqueirão, cidade natal dos dois, Rio Grande do Sul, a 440 quilômetros da capital.
Oracy era 17 anos mais velho. “Você não sabe, mas a sua figura foi uma das mais importantes durante a infância e uma parte da adolescência”, informa Caio Fernando, que morava no outro lado do quarteirão, num ângulo transversal, de onde da janela observava e admirava os hábitos do poeta em sua “casinha de madeira quase escondida atrás de muitas plantas, com um coqueiro de onde surgia a lua, quando estava cheia”, lembra.
Escutava de lá os discos de música erudita, “seria Beethoven ou quem sabe Wagner”, que subia com o cheiro forte de um jasmineiro em frente.
Eles nunca se encontraram. “Nunca nos falamos, praticamente, nunca nos olhamos. Ficou só aquela vibração de silêncio, muito forte”, pontua noutro trecho, “dois malditos que se reconhecem nem que seja necessário sequer falar sobre isso.”
A única comunicação entre eles foi através dessa carta, escrita quando Caio estava em São Paulo, trabalhava para jornais e revistas e se preparava para lançar seu quarto livro, “Morangos mofados”. Foi motivado ao receber do conterrâneo um exemplar de “Poemas Opus 4”: “Tive uma grande emoção, há pouco, ao abrir o pacote com o seu livro”, começa a carta, datilografada em sua Olivetti Lettera 44.
A carta na íntegra está no maravilhoso livro “O que importa em Oracy” (Grupo Editorial Fronteira Oeste, 2003), relatos biográficos organizados por Fátima Friedriczewski, Froilan Oliveira e Júlio Prates.
Oracy faleceu em 2018, aos 88 anos. Caio tinha um pouco mais da metade, 47, quando partiu em 1996.
Hoje – 12 de setembro – 76 anos de seu nascimento. Também nunca nos encontramos. Nunca o vi, sempre o amei. Na vizinhança de sua tão bela literatura, Caio reside em um dos lugares mais bonitos do meu coração.
Foto: Bob Wolfenson, 1993