Luiz Nogueira, a morte de um homem comum

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Por Enio Squeff, jornalista, escritor e artista plástico
Em 1942, em plena guerra, Aaron Copland, compositor norte-americano, escreveu uma peça paradigmática: “Fanfarra para um homem comum”. Era um uma homenagem aos soldados que saíam de suas casas com seus sonhos modestos, e iam morrer nos campos europeus durante a Segunda Guerra. Lembrei-me da peça ao saber hoje da morte do meu queridíssimo amigo, Luís Nogueira: a peste, na sua forma bolsonarista, o atingiu, quando cuidava de sua mãe infectada.
Lutou durante quase um mês. Ontem, por fim, seu largo coração, em que cabiam todos os meus filhos e muitos dos meus amigos, sofreu três paradas cardíacas consecutivas, Mais um que eu ponho na conta deste maldito governo.
Luizinho, como o chamávamos na família, era assíduo em nossas festas. Pertencia ao nosso círculo mais íntimo. Era a presença obrigatória em nossa casa, e meus filhos o consideravam sempre indispensável. Como sugere a música de Copland, era um homem comum.
Como jornalista nunca se alçou a grandes voos. Mas quando precisei de alguém que me ajudasse a levar avante a revista “Pau Brasil”, publicação de ecologia e cultura que conseguimos criar no DAEE – Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado, foi ele quem levou a cabo a parte da produção E aí nunca lhe coube a palavra “comum”: era assíduo, severo e sobretudo fiel. Se alguma coisa andava errado, era ele quem resolvia.
Nunca em várias dezenas de anos, duvidei um só instante de sua fidelidade, eu diria quase cega a mim e aos nossos ideais. Acho que a coisa começou muitos anos atrás quando o surpreendi ao convidá-lo para trabalhar na revista.
Era um jovem estudante de jornalismo, sabia pouco da profissão e iludia-se que o bom tratamento, exagerado, que lhe dispensavam quando menino, não era o indício da aceitação da sua condição de negro.
Vestia-se bem, era educado: o negrinho que não incomodava por suas boas maneiras, sua cordura. O negro ideal para o racismo entranhado em nossa sociedade, onde os pretos bons são os que mostram poucas vezes sua condição de humanos, com seus problemas, suas irritações.
Para o racista, o negro só é tolerável quando é o homem nietzscheniano – um super-homem, digamos. Certa vez, quando ele ainda muito jovem, entramos no assunto racismo: a caro custo convenci-o de que como negro, tinha de se incorporar na luta contra o racismo que, então, ele mal acreditava que existisse.
Todos os tratavam bem, era um garoto bem comportado; isso, até o dia em que começamos – por ele estar comigo e eu com ele– a enfrentar os canalhas que nos hostilizavam por sua negritude.
E eu por ser seu amigo, na verdade padrinho de casamento. Padrinho palavra que não lhe faltava ou quando brigávamos (e sempre foram brigas de amigos), ou quando queria me acalmar. “Que que é isso padrinho? “.
Não foram poucas as vezes em que nos defrontávamos quase à porrada, com essa escumalha que hoje vocifera livre e contente por ter um genocida racista no poder.
Desde o começo da sua internação fiquei seriamente abalado. Como agnóstico, porém, não hesitei em pedir aos amigos crentes que rezassem por ele. Dá-se que as histórias de Gólgota, que os orixás sejam muito mais que mitos.
Guardei-me de não ser cínico: se não acreditava ( e ele, crente, sabia disso), como postar-me , de repente, como católico, ou candomblezista, ou espiritista (ele era tudo isso um pouco, ainda que o irritassem os evangélicos), entrar numa igreja e fazer o que deixei há muito? Mas tentava telepaticamente falar com ele. Nisso eu até acredito.
Foi-se o meu querido. Nunca mais as flores belíssimas, sempre as mais exuberantes, com que ele assomava a casa da mãe dos meus filhos em seus aniversários.
Ultimamente tenho chorado muito. Agora sei que nem eu, nem a Elisete, sua ex-mulher que o cuidou o quanto pode, e sua mãe, dona Tereza, poderão contar com sua gargalhada franca, sua voz pesada e quente. Era um homem comum, ou seja, um herói na visão de Aaron Copland e da minha . São eles, principalmente eles, que estão morrendo. Mas eu nunca esperei que um quase filho meu fosse embora nessa leva de brasileiros, que a peste Bolsonaro enterra diariamente.
Adeus, Luizinho. Sei que você foi um dos mais queridos amigos que me foi dado ter nesta vida – cada dia mais trágica. Que seus orixás. Nossa Senhora Aparecida e outras entidades existam mesmo como você acreditava. E que bebam, com você, o bom vinho que você tanto apreciava e fazia por merecer.

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