A física Lisa Randall, mencionada no início do post, chamaria a mídia brasileira de “flatland”, um universo bidimensional onde apenas se anda para frente ou para trás.
Por Miguel do Rosario, compartilhado de Revista Fórum
Na foto: Lula com mídia independente, 7 de fev de 2023.Créditos: Ricardo Stuckert
A física Lisa Randall, premiada autora de livros populares sobre matéria escura (dark matter), multiversos e dimensões ocultas, vem tentando explicar que a nossa realidade pode ter mais do que as três dimensões conhecidas, aquelas que nossos sentidos e cérebro conseguem apreender: a horizontal, a vertical e a profundidade.
Para nos fazer compreender como a existência de outras dimensões, ocultas para nossos sentidos, é possível, e até mesmo necessária, ela problematiza o próprio conceito de dimensão, que, segundo ela, abarca múltiplos sentidos. Aproveito o gancho para abrir um portal para a conjuntura política nacional e as diferentes maneiras como os jornalistas podem interpretá-la. Um governo pode ser criticado e avaliado em várias “dimensões”. Podemos abordar sua política econômica ou cultural, seus projetos para educação, saúde e transporte público, etc. Da mesma maneira, eu posso apoiar um aspecto do governo e ser crítico em outro. A relação entre um jornalista ou um órgão de mídia e um governo jamais é bidimensional, ao menos quando estamos numa situação relativamente “normal”, como agora, em que o presidente é uma pessoal normal e democrática.
Daí a mediocridade da Folha de São Paulo em tentar depreciar os 41 jornalistas, influencers e youtubers que participaram de um encontro com o presidente Lula, nesta terça 7 de fevereiro de 2023, chamando-os de “blogs alternativos alinhados à esquerda”.
A qualificação chega ser cômica, em função da redundância deliberadamente ofensiva, já que um “blog” já seria algo, por si mesmo, “alternativo”.
Ali estavam jornalistas, âncoras ou editores do Intercept, Congresso em Foco, Opera Mundi, Revista Forum, 247, DCM, Cafezinho, Sul 21, que são sites que produzem, há anos, conteúdo jornalístico de qualidade. Não são mais propriamente blogs. Perdoemos o “alternativo” porque foi o próprio governo que usou o termo, embora fosse mais adequado e digno se a chamada oficial mencionasse simplesmente “sites de notícias, influencers e youtubers”. Ponto. Os adjetivos “alternativos e independentes” dá um tom circense que não faz jus ao trabalho dos que ali estavam, todos pagando muito caro pela passagem áerea comprada – do próprio bolso, é bom dizer – em cima da hora.
E embora sejam, de fato, “alinhados à esquerda”, essa é uma qualificação medíocre, quase bolsonarista, especialmente pelo fato de que a dimensão ideológica é orgânica, presente, necessária, a todo órgão de imprensa. A referência foi apenas deselegante. A Folha esqueceu que, para o bolsonarismo, ela também é um jornal “alinhado à esquerda”, para não dizer “comunista”? Ao mesmo tempo a expressão soou emblemática e informativa, uma notícia em si mesma. A imprensa corporativa brasileira tenta vender a imagem de que ela é uma observadora excluída da própria conjuntura política. Seus repórteres noticiam apenas sua excelência, o fato, e seus editorialistas expressam tendências plurais da sociedade. Não é assim. A imprensa é parte integrante do jogo político, no Brasil e no mundo inteiro, hoje e ontem.
A propósito, sempre vale lembrar que, como nos conta Franklin Foer, em seu livro World Without a Mind, a grande imprensa americana, que serve de modelo para os nossos jornalões, começou sua vida como tablóides inteiramente panfletários em favor do partido democrata ou republicano, tornou-se em seguida histericamente sensacionalista, e apenas em sua fase tardia, há poucas décadas, vem apostando na imagem do jornalismo como algo próximo da ciência. O que foi um avanço bem vindo, diga-se de passagem, embora lamentemos que toda a sua suposta dignidade crítica, todo o seu orgulho de ser imparcial e equilibrada, evaporem tão rapidamente sempre que escuta os tambores de guerra. A imprensa ocidental é, por natureza, uma imprensa forjada nas guerras, e sempre que soa a corneta, se perfila com rígida e homogênea disciplina, gozando sem medo com o ruído dos mísseis explodindo, de preferência em países bem distantes.
A grande mídia brasileira, por sua vez, continua apegada a um universo bidimensional, preto ou branco. Ou você é um jornalista ou site “alinhado à esquerda”, ou você é um órgão “neutro”. O Poder 360, ao menos, foi mais franco, e disse o que a Folha queria dizer mas não teve coragem: “blogs alinhados ao governo”. Afinal, esse é motivo do ódio mal contido da Folha, dos jornalões familiares e de todo o ecossistema midiático “alinhado à direita”: eles tem um medo atávico, irracional, classista, de que o governo Lula se liberte dos dogmas neoliberais e conservadores. Digo que é irracional, mas não porque considero que a imprensa conservadora não tenha consciência do que faz, mas por suspeitar de que, por trás de todo o verniz acadêmico, aristocrático e elitista dos donos da mídia, reside uma violência primitiva e feroz, inspirada pelo terror por uma mudança que poderia reduzir o poder relativo dos muito ricos.
Tudo sempre nos remete a esse julgamento binário, e que hoje é mais ultrapassado do que nunca, em que você ou pertence à imprensa “séria”, que no Brasil é composta, basicamente, por três ou quatro jornalões, ou é “blog alternativo de esquerda – alinhado ao governo”.
Chumbo trocado não doi, e os blogueiros de esquerda (aceito a qualificação, beleza) batem o bastante na mídia tradicional para se lamentar de que não sejam tratados com a devida delicadeza. Mesmo assim, é um pouco triste, porque francamente eu achava que, depois de Bolsonaro, havíamos amadurecido, e estabelecido, senão uma trégua, mas ao menos um novo acordo de convivência civilizada, entre “blogs” e “mídia”. O tom da “mídia independente alinhada à esquerda”, por exemplo, mudou bastante. Da nossa parte, notei uma trégua relativa, até o momento, talvez porque blogs e mídia integram a mesma frente ampla, contra o fascismo e a extrema-direita, uma ameaça muito real e perigosa, que ainda nos ronda.
Entretanto, é preciso separar os blogs e a “militância de esquerda”, e isso sempre foi motivo de confusão, inocente ou deliberada. Apesar de que a militância deva ser, de uma forma ou outra, disciplinada por valores e exemplos das lideranças, é tolice pretender um controle absoluto, ainda mais no ambiente radicalmente democrático e livre da política nacional. Militantes cometem excessos o tempo inteiro, e isso faz parte do jogo. Em alguns acasos, são até mesmo excessos necessários, porque ajudam a marcar uma posição. Desde que não se apele a violência física, ou a ataques à dignidade humana, os excessos, ingenuidades e erros de análise dos militantes são sempre perdoados.
As gerações maduras da militância de esquerda, as que viveram em loco as odiosas conspirações midiático-judiciais dos últimos 20 anos, permanecem bastante hostis – compreensivelmente – aos jornalistas da mídia tradicional.
Com o advento das redes sociais, o militante de esquerda, assim como o militante de qualquer ideologia (e a existência da figura do militante político é inerente, necessária, a um regime democrático), descobriu que o vidro blindado que o separava dos aparelhos ideológicos do poder, como os jornalões, não existe mais. Essa súbita vulnerabilidade dos representantes do poder – e um jornalista de um grande jornal deve entender que é isso que ele simboliza, para muita gente – embriaga alguns militantes, e os faz embarcar, lamentavelmente, em ondas de linchamento. Essa é uma tendência, a propósito, que os partidos e o próprio governo, deveria combater, porque o resultado é sempre negativo para a própria esquerda.
Voltando a coletiva de Lula, tínhamos ali 41 pessoas, todos trabalhadores de comunicação, todos pessoas honestas, nenhum fanático, nenhum fascista, nenhum adepto de qualquer tipo de violência, seja contra as instituições seja contra pessoas. A deselegância da Folha foi muito desnecessária.
A organização cometeu falhas, todavia. Uma delas é que seria mais produtivo se fossem realizados dois encontros separados: um com influencers e representantes de movimentos, outro com sites jornalísticos. A fusão destes dois grupos acabou fazendo mal para ambos: o ataque da Folha ao grupo como um todo, chamando-os de “blogs alternativos alinhados à esquerda”, na verdade foi uma diatribe contra os portais jornalísticos, odiados pela família Frias porque ajudaram a emancipar parte da classe política, especialmente sua parcela mais progressista e mais sensível aos movimentos da opinião pública. A agressão aos portais jornalísticos de esquerda respingou nos influencers, que não tem nada a ver com essa briga. Os youtubers e influencers, por sua vez, pertencem a uma outra cepa da comunicação digital. Uma parte deles sequer participou das sangrentas guerras de comunicação que aconteceram durante os primeiros governos petistas, com blogs de um lado, jornalões de outro.
Por outro lado, tanto o governo Lula quanto a mídia progressista jamais devem esquecer que a vitória de 2022 foi o resultado de uma luta acumulada de muitos anos, especialmente desde 2004, contra as narrativas e conspirações golpistas que a imprensa corporativa inventou e alimentou durante todo esse tempo.
De qualquer forma, foi uma coletiva produtiva, onde Lula pôde expor seu ponto-de-vista com total liberdade, discorrendo sobre os assuntos mais importantes do momento, como a política de juros do Banco Central, a guerra na Ucrânia e a relação do governo federal com os militares.
O processo de escolha sobre quem seriam os perguntadores recebeu críticas, porque não foi democrático. José Chrispiniano, assessor de imprensa de Lula, escolhia de maneira discricionária, e como foram muito poucos os selecionados, apenas seis ou sete, isso gerou naturalmente insatisfações. Seria mais interessante que houvesse um sorteio, ou mais de um sorteio. Por exemplo, um sorteio entre os sites jornalíticos, outro entre os influencers e um terceiro entre os youtubers.
Importante entender que o ecossistema midiático de uma democracia tão vibrante como a brasileira é multidimensional. A Folha está apenas sendo “cringe”, ou seja, obsoleta, ao se apegar a essas visões binárias de jornalismo. A pergunta que eu, editor do Cafezinho, gostaria de fazer a Lula, por exemplo, seria sobre a questão do transporte ferroviário. “Eu tenho um sonho”, pensei em dizer a Lula, parafraseando Martir Luther King, “de ver esse país inteiramente cruzado por trens de alta velocidade, e nossas cidades possuindo vastos e complexos sistemas de metrôs e trens de superfície”. Em virtude da viagem próxima de Lula a China, eu perguntaria então se ele não achava que seria uma ideia interessante oferecer a Xi Jiping um projeto audacioso, de longo prazo, para que a China fosse nossa parceira nessa grande revolução ferroviária que o Brasil tanto precisa.
Mesmo sabendo das dificuldades enormes, em termos de financiamento, para inaugurar uma nova era no transporte público nacional, acho que o governo deveria, no mínimo, apostar no poder do sonho, mandando fazer e divulgar um projeto neste sentido, para que a sociedade reaprenda a pensar grande. O destino do Brasil não precisa ser tão medíocre. É muito bonito que Lula tenha como meta principal matar a fome de todos os brasileiros, assegurando-lhes o direito de fazer, no mínimo, três refeições ao dia. Só quem passou fome sabe o valor existencial do alimento. Mesmo assim, a gente sabe que a emancipação última do povo, aquela que lhe dará não um prato de comida, mas acesso ao mundo do trabalho e do conhecimento, apenas virá com o desenvolvimento do país, e não vejo como isso será possível sem uma revolução ferroviária.
Além disso, nenhuma política pública será bem sucedida sem que o trabalhador tenha acesso a um transporte público de qualidade, seja para se movimentar dentro de sua cidade, seja para ir a outra cidade, e o transporte coletivo de massa mais nobre, limpo, ágil, moderno, é o trem, seja o de alta velocidade que liga municípios distantes, seja o metrô e o trem de superfície, que encurtam as distâncias dentro do perímetro urbano.
Esse era o assunto que eu gostaria de discutir com Lula.
A física Lisa Randall, mencionada no início do post, chamaria a mídia brasileira de “flatland”, um universo bidimensional onde apenas se anda para frente ou para trás. Para essa mídia, ou se é “alinhado à esquerda” ou se faz parte dos “homens de bem” do jornalismo, aqueles que sabem fazer as perguntas certas, as quais, no caso, devem ser aquelas tacitamente aprovadas e carimbadas pelo mercado financeiro.
Parabéns, portanto, ao presidente Lula, por não apenas se expor ao contraditório, mas ao contraditório do contraditório, já que, em vários aspectos, a mídia independente, outrora também chamada de “blogosfera progressista”, pode ser vista como a imprensa da imprensa, pois se a imprensa tem como uma de suas principais missões vigiar e criticar o governo, a blogosfera precisa vigiar e criticar o governo E a imprensa!