Lula em Paris: uma crônica sobre amor, discurso e poder

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Por Liniane Haag Brum, compartilhado de Carta Maior – 

Cheguei ao teatro de 200 lugares um pouco antes de ser anunciada a leitura de uma das milhares de cartas que Lula recebeu na prisão. No centro do palco do Thêatre du Soleil, na Cartucherie, antiga fábrica de projéteis transformada em um conjunto de cinco salas de espetáculos, uma atriz francesa de quem não guardei o nome leu as palavras da remetente chamada Camila:

 


A narrativa “termina bem” e seu mote é conhecido: a mudança de status social e a emergência econômica de uma geração à outra. A genealogia desde uma origem pobre e espoliada e a chegada à universidade, durante os anos do PT no poder; a atribuição do feito aos governos de Lula e a gratidão amorosa. Antes de assinar a carta, Camila escreve: Je vous embrasse. Algo como “eu lhe beijo”.

Leitura no idioma francês e tradução simultânea finalizada, Lula foi chamado ao palco, de onde pergunta: “Vocês acreditam no amor?”. Uma voz feminina grita: “Eu acredito no amor, eu amo você”. Na hora lembrei dos shows de Chico Buarque, onde invariavelmente ouve-se da plateia feminina palavras de devoção. Não julgo, sei que principalmente nós, mulheres, somos capazes de loucuras em nome do amor.




“O amor é possível quando duas pessoas querem se amar”, ele continuou. Como era de se esperar, a prisão não tirou de Lula o poder de discurso, muito pelo contrário. Pessoalmente, no entanto, o conteúdo do seu discurso já não colava em mim há um bom tempo; tanto tempo que nem sei dizer.

Pelo menos até a última terça-feira.

Talvez o teatro – o mais bonito da capital francesa – tenha ajudado, dando ao evento uma aura de proximidade. Lula bem na nossa frente, nós que éramos poucos, tão escolhidos: 200, talvez 250, num universo de aproximadamente 17 mil brasileiros residentes em Paris. Um encontro com a militância, com estudantes, com intelectuais e artistas. Com todos nós que sempre o amamos (amávamos) tanto.

(Mesmo se alguns de nós passamos à mágoa: mas, o que é a mágoa senão uma modalidade do amar? um ressentimento infinito em relação à expectativas negligenciadas ou frustradas pelo ser amado?).

*

Até chegar ao assunto política, Lula falou muito de coisas que se poderia classificar como invisíveis ou impalpáveis. “O bom político que você deseja está dentro de você.” O resultado de uma eleição é o “resultado de como estava o povo no dia da eleição”. “É preciso recuperar o humano no ser humano”. Escuto o eco de leituras. Mas, quais? Quais foram os livros de cabeceira de Lula na prisão? É o que penso, buscando trazer um pouco de racionalidade e julgamento à emoção que sinto.

Segue a cerimônia.

A noite é de agradecimentos, ele diz, antes de chamar para perto de si, no centro do palco, pessoas que lhe deram apoio durante o período de cárcere. Depois, mais para o final, as denúncias. O ex-presidente reafirma que vai provar a sua inocência; comenta o significado da prisão no cenário internacional e o golpe: “o tempo se encarregará da verdade”, “na verdade, eles não suportaram a ideia do BRICS”, “eles não suportaram a ideia do Brasil ter um protagonismo internacional”, “o Brasil nunca tinha sido pensado para ser governado para 100% da população”.

A estratégia de começar a falar sobre o amor e depois seguir com os tópicos da política não é nova, e ele havia assim se pronunciado um dia antes, quando, na prefeitura da capital francesa, recebeu de Anne Hidalgo o título de Cidadão Parisiense. Não fui ao ato de condecoração, mas soube que o discurso começou com declaração de amor ao amor – e a sua atual esposa, justamente objeto e fonte amorosa – e daí saltou para a política.

Anne Hidalgo, se alguém não sabe, é a prefeita de Paris. Uma socialista corajosa que, entre muitas iniciativas controversas, principalmente na opinião de conservadores – que quase sempre são xenófobos declarados – designou um prédio no centro de Paris como moradia de pessoas emigradas. Um edifício que estava há anos vazio. Hidalgo vai tentar reeleger-se nas eleições da semana que vem. Agora, vejam: embora arrojada e com imensa boa-vontade, ela não conseguiu apagar a pobreza do mapa da cidade. (Eu escrevi apagar e não esconder, eu quis dizer eliminá-la e não mandá-la para longe dos olhos dos turistas e dos cidadãos integrados). Cada vez mais, nos desvãos, nas esquinas, em torno das magazines de luxo, dormem ao relento famílias inteiras, pessoas vindas de guerras e ditaduras, algumas visivelmente deterioradas pela dependência química, muitos desempregados e outros que nem sei identificar. Só não vê quem não quer os estupendos museus, bulevares e edifícios rodeados da expressão inequívoca da (nossa) miséria, – morar na rua, expor-se ao frio cortante do inverno europeu. Todo o dia é preciso força para arrancar a pedra que pesa sob o coração, quando se passa por crianças ao lado de seus pais, a esmolarem.

Mas voltemos ao palco:

“Não se pode ter uma sociedade justa sem um estado forte”, Lula diz, parecendo ter-se imbuído do velho espírito de Lula. Vejam, ele disse f-o-r-t-e e não absoluto. Defendeu a universidade, a expansão da universidade durante os governos do PT, lembrou que o Brasil foi o último país da América do Sul a ter uma universidade. Lamentou essa herança.

E, quando quis fazer gracejos conosco e imprimir ao evento positividade e esperança, deu um sorrisinho maroto, e declarou: “agora eu sou cidadão parisiense” ou “fiquem tranquilos porque eu estou tranquilo”. Era um evento da militância e a militância lulista se preocupa muito, diria demais, com o seu objeto de amor; então o recado foi claro: fiquem tranquilos, o grande pai está segurando a onda.

Lula não criticou frontalmente a classe média. Mas falou do ódio aos negros que ascenderam como um elemento importante do motor do golpe. Sim, sempre houve no discurso do ex-presidente, além de amor, a marca da luta de classes. Eu mesma demorei muitos anos para perceber isso. Sempre teve nele a oposição a uma imaginada classe média cheinha de privilégios e preconceitos. Ela existe, mas ela também coexiste com outras formas médias (e não medíocres) de se pensar e ser.

*

Importante: fiquei tranquila ao ouvir de Lula que Lula não sabe “até quando vai viver”, mas que, enquanto estiver vivo, vai lutar para provar a sua inocência. Não estou sendo irônica. Fiquei feliz porque tinha lido na imprensa brasileira que ele desejaria viver 100 anos, justamente para poder ter tempo de governar o Brasil outra vez. Não que isso não possa vir a ser bom e até desejável, mas, por trás da afirmação coquete e brincalhona, chegava ao meu ouvido tão especializado em decifrar discursos um projeto sobretudo de poder. Trata-se de uma fala que, além disso, se retroalimenta da idolatria da militância e desperta – ainda mais – o ódio dos odiosos ora no poder.

Aliás, desejaria muito saber: como é isso de amor em tempos de ódios?

*

Aliás, se me desloco para ao âmbito dos desejos pessoais, devo admitir que gostaria de escrever a minha carta para Lula. E rogo que fosse lida em voz alta, em um evento público. Como seria isso?

Vou tentar responder. A missiva começaria por relembrar a minha própria adolescência, quando pela primeira vez soube da existência do Lula. Foi na universidade, onde entrei aos 17 anos, e quem me apresentou a ele foi uma professora de sociologia. Quando votei pela primeira vez, votei em Lula.

Não vou demarcar datas, mas posso afirmar sem erro que a temporalidade da minha narrativa lulo-epistolar teria dois, talvez três marcos fundamentais. O primeiro, o próprio Lula e seu discurso, que tanto ressoava na jovem idealista que fui. O segundo e o terceiro são íntimos, mas também coletivos: a descoberta do que significava ter na família um tio desaparecido na ditadura militar, mesclada à esperança renovada em ter a história de seu assassinato revelada e reconhecida como um crime de Estado. Finalmente, pensando melhor, haveria um quarto marco em minha carta, muito importante: a aposta em Lula como força política e ética capaz de promover a famosa e frustrada abertura dos arquivos da ditadura.

*

Se hoje estou em Paris, é também porque continuo (agora na vida acadêmica), a tentar contar para o Brasil a inocência daqueles que foram mortos e desaparecidos na ditadura militar em geral, e na guerrilha do Araguaia em específico.

O meu paradoxo: mesmo sabendo que o mais popular e progressista governo que jamais tivemos não colocou um ponto final digno nessa história, é preciso abandonar a mágoa que sinto. Embora não possa jamais esquecer que isso deveria ter sido feito pelo governo dito progressista (de Lula). Seguir na mágoa é permanecer na impossibilidade de mover-se além e de enxergar a própria vida. Assim, é preciso limpar a mágoa e seguir.

O paradoxo de Lula é que ele precisa deixar de ser Lula, para poder voltar a ser Lula. E mesmo que consiga (mesmo que se prove a sua inocência), talvez jamais terá o Brasil , mais uma vez, para governar. Ele sabe disso e lamenta profundamente. Assim como lamenta o seu encarceramento. “Eu nunca imaginei que isso pudesse acontecer”, ele disse, quase textualmente, no dia 3 de março de 2020, em Paris.

Lula sabe, lamenta, mas não arrefece. Lula não está só: Dilma Rousseff, dizem aqui, articulou a viagem; ela e Fernando Haddad o acompanham, ambos ocupando estrategicamente as cadeiras adjacentes. Aliam-se , assim, aos que querem enxergar o mundo como uma só coisa, aqueles que desejam enfrentar as atuais mazelas da Europa e do globo todo: os países infestados de extrema-direita, repletos de pessoas em situação de rua e miséria..

Lula me mostrou, naquela noite, que devemos ser (ou tentar ser) maiores do que nós mesmos. Sempre.

É por isso que entre o ódio, o amor e a idolatria, eu fico com a esperança e com o coração tranquilo. E a sensação imbatível de me colocar inteira do lado certo da História.

Sempre que for preciso.

Liniane Haag Brum é autora de Antes do Passado – o silêncio que vem do Araguaia (Arquipélafo, 2012) e O Caranguejo (Patuá, 2017)

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