Jornalista refuta críticas feitas a Lula após presidente comparar ação de Israel em Gaza à de Hitler contra judeus, destaca que a comunidade judaica não é homogênea e que muitos de seus membros pelo mundo, inclusive israelenses, percebem que o conflito é um genocídio marcado pelo desprezo pela vida, como o Holocausto.
Por Glenn Greenwald, compartilhado de Folha de SP
Desde que Lula evocou o Holocausto para denunciar a destruição de Gaza por Israel, a grande mídia brasileira se uniu, com raras exceções, para condená-lo. Na segunda-feira (19) à noite, o jornalista William Waack afirmou na CNN Brasil que a declaração de Lula “ofende judeus no mundo inteiro”.
Deixando de lado a incongruência que é ver William Waack se colocar como vigilante da intolerância e fiscal do que se pode dizer no discurso público, a pergunta que faço é: com base no que ele se coloca como porta-voz dos “judeus no mundo inteiro”?
É verdade que a declaração de Lula enfureceu o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que declarou Lula “persona non grata” em Israel. Mas equiparar o governo de Israel a “judeus no mundo inteiro” não é só falso, é também antissemitismo.
Como todos os grupos, os judeus não são um monolito. Qualquer pessoa que, como eu, tenha crescido numa família judaica e imersa nessas tradições sabe que o grupo passa longe de ser homogêneo. Há dentre os judeus discussões e divergências sobre os mais diversos assuntos, inclusive o Estado de Israel, o tratamento desumano dispensado aos palestinos e a abjeta imoralidade da destruição de Gaza.
Um mês antes do ataque do Hamas de 7 de outubro, o ex-chefe do Mossad, agência de inteligência israelense, Tamir Pardo —indicado por Netanyahu— afirmou que Israel impõe “uma forma de apartheid aos palestinos”. Muitos líderes Israelenses, incluindo o ex-primeiro Ministro Ehud Barak, já disseram o mesmo.
O jornalista judeu brasileiro Breno Altmanvem repetidamente comparando as ações de Israel em Gaza ao nazismo, ao ponto de estar sendo investigado pela Polícia Federal por expressar sua visão. Um grupo de judeus brasileiros, conforme relatado pela Folha, emitiu uma nota para defender as declarações de Lula.
Nesta semana, a escritora judia russa Masha Gessen recebeu o Polk Award, o segundo prêmio mais importante no jornalismo dos EUA, por seu brilhante ensaio na revista New Yorker intitulado “Na Sombra do Holocausto”. No texto, Gessen aponta como o Holocausto é frequentemente evocado para silenciar as críticas aos crimes de guerra de Israel.
Gessen cita a filósofa Hannah Arendt, judia que em 1948 comparou grupos sionistas extremistas ao Partido Nazista, tanto em sua mentalidade quando em suas táticas —isso tudo menos de três anos depois do fim da Segunda Guerra.
No mesmo ano, o físico judeu Albert Einstein e outros importantes intelectuais judeus publicaram uma carta comparando os métodos de atuação de Menachem Begin, o terrorista sionista que se tornaria depois primeiro-ministro de Israel, aos dos nazistas.
Em seu artigo, Gessen documenta como os intelectuais judeus mais importantes do pós-guerra insistiam que as lições do Holocausto deveriam ser aplicadas universalmente, e que nenhum país ou grupo, sionistas inclusive, deveria se furtar de absorver esse aprendizado.
Gessen então descreve como, visitando os museus do Holocausto pelo mundo, se lembrava do sofrimento da população de Gaza nas mãos de Israel.
Sabendo então dessa enorme pluralidade no seio da comunidade judaica, como explicar a pretensão de uma pessoa como William Waack, que, como a grande maioria da mídia brasileira, se sente no direito falar em nome dos judeus e de impor limites às discussões sobre o Holocausto? E os judeus que rejeitam os ditames dos Netanyahu do mundo, quem falará por nós?
Equiparar as ações do governo de Israel à totalidade dos judeus do mundo é ofensivo. Todas as pesquisas mostram que o público israelense se voltou fortemente contra Netanyahu e espera ansiosamente para depô-lo. Há protestos contra ele, liderados por judeus israelenses, todos as semanas. São judeus muitos dos líderes mais vocais em suas denúncias de que a guerra em Gaza é um genocídio.
Mas há ainda um tema muito mais importante trazido à tona pela controvérsia: a quem pertence a memória do nazismo e da Segunda Guerra? Existe alguém com legitimidade para ditar como o Holocausto pode ser discutido, por quem, e com que agenda política? Existem países específicos cujas ações estão imunes, por algum motivo, às comparações com os piores abusos da Segunda Guerra? Se sim, essa imunidade se baseia em quê?
Quando a Segunda Guerra terminou e a real dimensão do Holocausto foi revelada, os países aliados, uma vez vencedores, decidiram não executar imediatamente os líderes nazistas. Em vez disso, foi realizado um processo jurídico transparente, conhecido como o julgamento de Nuremberg.
O objetivo era publicizar e legitimar o veredito —e, mais que isso, mostrar ao mundo as evidências das atrocidades cometidas pelos nazistas para, acima de tudo, estabelecer os princípios pelos quais os países deveriam se guiar no futuro.
O procurador-chefe dos EUA no julgamento, Robert Jackson, enfatizou em suas colocações iniciais que a maldade nazista se repetiria no futuro. “Esses prisioneiros nazistas representam uma influência sinistra que continuará no mundo mesmo depois que seus corpos retornarem ao pó.”
Referindo-se às sentenças contra criminosos nazistas específicos, Jackson disse: “Se esse julgamento for ter alguma utilidade no futuro, deverá servir para condenar também a agressão de outras nações, inclusive as que aqui estão na posição de julgadoras”.
Os horrores do Holocausto não foram uma lição sobre a maldade dos alemães ou a vulnerabilidade dos judeus. Foram uma lição sobre a natureza humana e a nossa capacidade para o mal, e como sociedades sofisticadas e educadas podem sucumbir a impulsos genocidas. Por isso, as sentenças proferidas em Nuremberg não podem dar a qualquer país, incluindo Israel, uma justificativa para suas próprias ações. Pelo contrário: os crimes do Holocausto não podem ser repetidos por nenhum país, nunca mais.
Os horrores da destruição de Gaza por Israel já estão visíveis para todos que quiserem ver. O ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, prometeu no início da guerra: “Estamos impondo um cerco total a Gaza. Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem combustível. Tudo bloqueado”. O motivo: “Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”.
Hoje podemos ver que essa promessa, bem como a ideia de que os palestinos são sub-humanos, não era blefe. Segundo relatório da ONU, de todas as pessoas do mundo que enfrentam a fome extrema, 80% estão em Gaza. Trata-de se uma crise humanitária sem paralelo, diz o texto. Há inúmeros casos, incontroversos e amplamente documentados, de crianças à beira da morte por fome.
Ao menos 29 mil pessoas foram mortas em Gaza desde que Israel começou a retaliação aos ataques do Hamas de 7 de outubro: 70% são mulheres e crianças. A destruição da vida civil em Gaza é pior do que qualquer guerra que o mundo tenha visto no século 21.
Mais bombas foram lançadas por Israel em Gaza, um território pequeno e densamente povoado, na primeira semana do conflito armado (cerca de 6.000) do que foram jogadas anualmente pelos EUA no Afeganistão, de 2013 a 2018 (nesse período, nenhum ano registrou mais de 4.400 bombas), segundo dados da Força Aérea israelense e da Central das Forças Aéreas dos EUA.
Ninguém, nem mesmo Lula, está sugerindo que a escala das mortes em Gaza seja comparável ao Holocausto. O que muitas pessoas estão dizendo —inclusive alguns dos intelectuais judeus mais proeminentes do mundo, como Masha Gessen— é que os mesmos princípios de desprezo pela vida e desumanização coletiva que culminaram no Holocausto estão também por trás da destruição de Gaza.