Por Cíntia Alves, publicado no Jornal GGN –
“Eu tenho muita coisa na garganta para falar. Eu estou cansado de ouvir procurador dizer que não precisa de provas, que ele tem convicção. Ouvir juiz dizer que não precisa de provas, que vai decidir com fé. Eu quero provas”, disse Lula
Os relatos de veículos da grande mídia sobre o primeiro depoimento de Lula como réu na Lava Jato não fazem jus ao que, de fato, foi a audiência. Folha retratou Lula como um vitimista, agarrada a sua fala sobre ser alvo de um “massacre” midiático. Veja pintou uma faceta arrogante porque, apesar da “perseguição”, Lula garantiu que aparecerá à frente em todas as pesquisas de opinião sobre 2018. No Estadão, uma tentativa de humilhá-lo: “Veja Lula no banco dos réus” era o call-to-action ligado ao vídeo da audiência que o portal exibia com exclusividade, mesmo sem permissão judicial.
Só que Lula não simplesmente sentou no banco dos réus da Lava Jato. Lula desabofou. Fez uma defesa enérgica contra a acusação de ter mandado comprar o silêncio de Nestor Cerveró, diante de um juiz que considera o oposto de Sergio Moro – Ricardo Leite, da 10ª Vara Federal de Brasília, a quem chamou de “imparcial” e agradeceu por ter lhe dado “liberdade” para falar. “O momento é do senhor, é sua defesa, o senhor tem todo direito de falar”, respondeu o magistrado.
“Todos aqui têm dimensão do que é um cidadão que foi presidente da República, que foi considerado o mais importante presidente da história, que saiu com 87% de boa avaliação, que fez o Brasil ser respeitado no mundo inteiro, de repente ser pego de surpresa por manchetes de jornais e na televisão – todo dia, todo santo dia, no café da manhã, no almoço, na janta – com alguém insinuando vai apresentar a delação que vai pegar o Lula. (…) Eu cansei. Eu esperei pacientemente. Por isso, estou muito orgulhoso de estar aqui para poder, diante de um juiz imparcial, contar as minhas versões dos fatos”, disse Lula logo nos primeiros minutos.
Nessa ação penal, o ex-presidente é acusado pelo Ministério Público Federal de ter solicitado ajuda ao senador cassado Delcídio do Amaral para evitar que o ex-diretor da Petrobras, Nestor Cerveró, fizesse um acordo de delação premiada com a Lava Jato. Disse Delcídio que Lula tinha medo do que Cerveró poderia entregar a respeito de José Carlos Bumlai. A somatória do fatos, porém, não são nada favoráveis a Delcídio.
Preso em flagrante após oferecer dinheiro e uma rota de fuga a Cerveró, Delcídio decidiu implicar Lula no esquema para ter uma moeda de troca a oferecer à Lava Jato. Mas as testemunhas ouvidas no processo, até o momento, desmentem a versão do ex-senador. Tudo indica que ele agiu em interesse próprio e até conseguiu, ao longo de um ano, evitar a delação do ex-colega de Petrobras. Sim, Delcídio tinha cargo na estatal durante o governo FHC e estaria preocupado com o que Cerveró, que também atuava na Petrobras, poderia dizer sobre isso.
Lula declarou que não tinha motivação para tentar evitar a delação de Cerveró, ao contrário de Delcídio. Também disse que teve inúmeras agendas com o ex-líder do governo Dilma no Senado, mas nunca conversaram sobre qualquer coisa que pudesse virar munição para os procuradores da Lava Jato.
Chama atenção a postura do MP nesse primeiro depoimento de Lula. Os procuradores tiveram a chance de confrontar o ex-presidente com qualquer prova de que ele tenha participado de uma “organização criminosa”. Mas só fizeram perguntas sobre a delação de Delcídio que, a rigor, não prova nada, além de uma ligação de Bumlai que fez Lula perguntar: “Qual é o crime nisso?”
O GGN separou os principais trechos da audiência, incluindo o teor das perguntas feitas pelo MPF, defesa de Delcídio, Bumlai e pelo juiz Ricardo Leite, e as respostas de Lula. Acompanhe abaixo:
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SOBRE ACUSAÇÕES FEITAS PELA LAVA JATO
“Você sabe o que é levantar todo dia achando a imprensa na porta de casa porque eu vou ser preso?”
“Eu duvido, antes, durante e depois, entre os que estão preso e os que vão ser preso, que tem algum empresário ou político com coragem de dizer que um dia me deu 3 reais ou que um dia o Lula pediu 5 centavos para ele.”
“Eu fiquei oito anos dos meus mandatos, doutor, sem ir em um jantar, um aniversário, um casamento, exatamente para não dar pretexto a quem viesse pedir um favor, ou tirar uma foto e depois explorar essa fotografia.”
“Estou chateado pela ilação feita nesse processo contra mim pelo senador Delcídio. Se tem um brasileiro nesse momento que deseja a verdade nesse país, sou eu.”
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“Eu tenho muita coisa na garganta para falar. Eu estou cansado de ouvir procurador dizer que não precisa de prova, que ele tem convicção. Ouvir juiz dizer que não precisa de prova, que vai decidir com fé. Eu quero provas. Alguém tem que dizer qual é o crime eu cometi. Chamar o PT de organização criminosa, se dependesse de mim, cada parlamentar do PT e militante deveria abrir um processo para que provassem qual é a quadrilha. Eu estou cansado.”
“As instituições que eu ajudei a criar desde a Constituinte estão despretigiadas por comportamento pessoal. Gente que não pode abrir a geladeira e ver uma luz, já começa a dar declaração. Gente que pega o barbeador, começa a falar achando que é microfone do rádio. Eu cansei. Eu sempre valorizei Ministério Público, Polícia Federal. Nunca pedi a eles um favor.”
“Quando vejo um jovem procurador ir para a televisão falar uma hora e meia e depois dizer ‘não me peçam provas, eu tenho convicção’, não tem como levar isso a sério.”
“Eu gostaria que meus depoimentos fossem todos numa semana só, para poder desvendar os mistérios todos e acabar com essa hipocrisia de que fulano vai delatar e Lula vai ser citado. Está na hora de chamar o dono da Globo, Band e Record para ver se me delatam.”
“Eu aprendi a andar de cabeça erguida, e isso custa muito. Para quem nasceu na elite isso não é nada, mas para quem vem lá debaixo, não deixar colocar cangaia no pescoço não é fácil.”
“Em nome da liberdade de imprensa, ninguém pode avacalhar a vida dos outros. Tem gente que acha que eu sou contra a Lava Jato. Pelo contrário, eu quero que ela vá fundo para ver se acaba com a corrupção. Eu sou contra tentar criminalizar a pessoa pela imprensa, não nos autos do processo. Eu sou contra execrar, condenar [a pessoa pela mídia]. Sabe quantas horas eu tenho de notícia negativa no Jornal Nacional? Em oito meses, 16 horas! Nenhum político no mundo aguentaria isso. E eu vou matá-los de raiva, porque em toda pesquisa eu vou aparecer na frente, para eles saberem que nem sempre podem brincar com as pessoas.”
“O juiz, o promotor ou delegado não tem que ficar fazendo pirotecnia com as pessoas. Investiga, apura e depois condena. Se condenar, põe na cadeia e acabou.”
“O senhor está diante de um homem disposto a prestar tantos quantos depoimentos forem necessários. Se tem um brasileiro que quer a verdade sou eu.”
“Eu quero defender a minha honra, que é o valor mais importante que tem.”
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INTERVENÇÃO DO JUIZ RICARDO LEITE SOBRE ENCONTRO COM DELCÍDIO EM 8/4/2015 NO INSTITUTO LULA
“Só tem um brasileiro que poderia ter medo de depoimento de Cervero, pela relação que tinha com ele, que era o Delcídio. Eu não tinha relação com Cerveró. Portanto, eu não tive nenhuma preocupação com nenhum empresário ou diretor da Petrobras, porque eu não tinha relação com eles. Delcídio contou uma inverdade nesse processo.”
“Devo ter tido muitas reuniões [com Delcídio. Ele era senador e líder do governo, conversamos muitas vezes em SP e Brasília. Várias vezes ele esteve lá [no IL].”
“Eu não tenho nenhuma razão para ter problema com Cerveró. Era problema para Delcídio, que tinha relação com ele desde o governo anterior.”
“Doutor, hoje, no Brasil, a gente fala da Lava Jato no café da manhã, no almoço, no jantar e depois da novela. Só passa isso na TV. Mas não se falou em Cerveró, muito menos em Bumlai [em reunião com Delcídio]. É um absurdo. Eu não sei o que Delcídio esperou fazer com isso. Certamente depois de preso alguns dias, a pessoa arruma um jeito de sair da cadeia e resolve jogar a culpa em cima dos outros.”
“[Após a prisão de Delcídio] eu tive uma reação que ele gostou. Eu disse que ele era um imbecil, porque nem na morte você citaria se você teve ou não uma conversa com um ministro da Suprema Corte sobre algum processo. Eu fiquei sabendo da boca de alguns advogados que ele ficou muito chateado. Não quis ofendê-lo, apenas quis dizer que a atitude foi equivocada.”
PERGUNTAS DO MINISTÉRIO PÚBLICO
– Delcidio comentou que tinha medo de Lula?
“Ele não comentou [que tinha receio de alguma delação de Cerveró], mas era sabido por todo o mundo que acompanha esse processo da relação histórica de Delcídio com Cerveró. Tem até um livro publicado por uma jornalista da Veja que mostra claramente essa relação de Delcídio com Cerveró. Ela é muito antiga. No governo anterior ao meu ele chegou a ser ministro interino de Minas e Energia.”
– Acredita que Deldício usou seu nome para fazer a delação?
“Por tudo que vejo todo dia na imprensa, acho que tem alguém instigando a citar meu nome. Eu fico sabendo por notícias, não sei se é verdade, que todo dia ficam falando ‘cita o nome do Lula’. Eu canso de ouvir isso. É bem possível. Eu vi entrevista dele na GloboNews que parecia que ele tinha ganhado o Prêmio Nobel da Delação. Ou seja, depois que faz a bobagem que fez, se é que fez, ele tinha que jogar nas costas de alguém. A minha relação com ele era institucional e ele sabe disso.”
(…)
– Nomeações na diretoria da Petrobras eram feitas pelos partidos?
“Deixe-me dizer uma coisa, que parece que está virando costumeiro isso em depoimentos, a falta de compreensão sobre o que significa governo de coalizão no mundo. Quando você ganha uma eleição num regime presidencialista de coalizão, você tem que construir a maioria no governo. E você não monta com quem você quer. Obviamente você pode fazer um acordo programático e um acordo de participação no governo. (…) Todas as pessoas indicadas tinham mais de 30 anos na Petrobras. Vocês vão ter que ouvir muita gente para saber se tinha denúncia de corrupção. Porque se tivesse aparecido antes, essas pessoas não seriam indicadas.”
– Cerveró saiu da Petrobras e foi para a BR Distribuidora. Ele acha que foi por causa do empréstimo do Schahin ao PT e que teve sua benção.
“(…) Eu não tinha nenhum interesse em tirá-alo ou colocá-lo. Durante todo esse período, não teve nenhuma denúncia contra ele.
– Quem fez a indicação de Cerveró para a BR?
“Não sei se foi o partido ou José Eduardo Dutra, que teve relação com Cerveró porque ele foi presidente da Petrobras e depois foi ser presidente da BR. Eu suponho que foi isso ou algum partido pediu a transferência.
– Qual sua relação com Bumlai?
“Bumlai era meu amigo. Eu conversava com ele. Não sei [com que frequência]. Ultimamente ele andava com doença nos olhos, achava que ia ficar cego, estava passando muito tempo em Miami para se tratar. Depois foi cuidar de um câncer.
– Usava celular o IL para falar com Bumlai?
“Qual o crime do Bumlai ligar para mim? Ele tinha muito respeito e sabia que não era para discutir negócios. Negócios a gente discutia no Palácio.”
– Mas acha que ele usava seu nome?
“Doutor, se o senhor soubesse quantas vezes usaram meu nome em vão… Não tenho como saber de tudo isso. Se alguém falou, só se Bumlai provar isso ou Schahin. Eu duvido que algum deles diga que um dia eu chamei eles para conversar qualquer coisa, porque eu tinha noção que não podia permitir promiscuidade com agentes empresariais ou políticos.”
– A informação era que o senhor estava abençoando o negócio da Schahin com a Petrobras?
“Nem abençoando nem amaldiçoando, porque eu não sabia.”
PERGUNTAS DA DEFESA DE DELCÍDIO
– Bumlai tinha receio de Cerveró?
“Nunca mencionou. Bumlai nunca falou comigo do Cerveró. Quem falava comigo do Cerveró era Delcídio, que era amigo do Cerveró e amigo do filho do Cerveró.
– A delação de Cerveró foi usada na condenação de Bumlai?
“Não tenho conhecimento.”
PERGUNTAS DA DEFESA DE BUMLAI
– Qual a relação entre Bumlai e Delcidio?
“A impressão que tenho era que a relação era pequena, que Bumlai não tinha muita relação com Delcidio.”
– Bumlai ligou para Marisa
“A relação de Marisa com Bumlai era a mesma que ele tinha comigo.”
“Eu fiquei sabendo da ligação. Era o mínimo que eu esperava, que ele ligasse para dar os parabéns [pelo aniversário dela].”
PERGUNTAS DO JUIZ
Juiz Ricardo Leite pergunta qual a finalidade do IL e se Paulo Okamoto participou de reuniões entre Lula e Delcídio. O ex-presidente respondeu que o IL existe para promover as políticas sociais de combate à pobreza e inclusão desenvolvidas em seu governo, e diz não recordar se Paulo Okamoto participou de encontros com o ex-senador. Ele observou, porém, que nunca teve reunião “sigilosa” com Delcídio na sede do IL, ao contrário do que alega o réu-delator.