O governo continua sob pesado cerco da oposição, em cenário internacional cada vez mais belicoso, instável e competitivo, sobretudo depois da eleição de Trump nos Estados Unidos.
Por Carlos Ocké*, compartilhado de Viomundo
Brasília (DF), 14/08/2024: O presidente Lula participa da sessão de abertura do fórum Um Projeto de Brasil, na sede da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Sendo assim, diante da pressão do mercado e da mídia corporativa, após o primeiro turno das eleições municipais, Lula se viu forçado a apresentar um pacote fiscal, em resposta aos ataques contra o real (moeda): câmbio desvalorizado, inflação sob risco e juros mais elevados impactam a renda, o emprego, o investimento e desaquecem a economia.
Vale dizer, este ano o governo sofreu duas derrotas na gestão do arcabouço fiscal: uma promovida pelo Banco Central independente, que pressionou a taxa de juros para impedir mudanças no resultado do primário; outra articulada pelo centrão no Congresso, quando bloqueou e judicializou a compensação da desoneração da folha de 17 setores da economia e de parte dos municípios, deixando claro que a consolidação fiscal não se daria mais pelo aumento das receitas.
Agora a oposição quer tentar impor uma terceira, ao desidratar a dualidade orçamentária engendrada pela PEC da Transição e pelo próprio arcabouço fiscal, que, na prática, exclui as despesas do cômputo dos limites de gasto e do resultado do primário, contribuindo para elevação da taxa de crescimento da economia por meio dessa flexibilização da política fiscal.
Neste quadro, para não perder a capacidade de expandir a economia e para não entrar no pântano dos ajustes fiscais permanentes, Lula retoma a agenda da receita no contexto do pacote, colocando no centro da conjuntura a pauta da distribuição de renda e riqueza.
Entretanto, sua aprovação exigirá mobilização popular, com o objetivo de mudar a correlação de forças no parlamento.
Lula não se rendeu ao mercado
Dada uma correlação de forças desfavorável, para refrear o aumento da inflação, que pode colocar em risco a sustentação política do governo, Lula fez um recuo tático, atendendo aos apelos fiscalistas.
No entanto, num giro à esquerda, ele conseguiu pautar a questão do conflito distributivo, se antecipando e se preparando para a disputa presidencial, internalizando a proposta feita no G20, fórum que reúne as maiores economias do mundo.
Desse modo, Lula não se rendeu à chantagem da Faria Lima. Com a omissão do presidente do Banco Central (BC), essa posição do governo provocou a queda na bolsa de valores e a elevação do dólar e dos juros futuros, uma vez que o mercado foi fustigado, dada a proposta de tributar a renda dos super-ricos e de mitigar o volume dos cortes no orçamento.
Apesar da volatilidade da moeda brasileira, esse movimento especulativo não tem base na economia real, seja pelos fundamentos macroeconômicos (ritmo de crescimento e patamar aceitável do nível da dívida em moeda nacional), seja pelo fato de o pacote prever um corte expressivo das despesas primárias de mais de 1% do PIB em dois anos, reconhecido pela própria Febraban (Federação Brasileira dos Bancos).
Adotar o ajuste estrutural das contas públicas desmoralizaria Lula e levaria a economia brasileira para a recessão, o que seria um desastre para a governabilidade e para o campo democrático e popular nas eleições presidenciais de 2026.
A chantagem da Faria Lima
Desde abril, Roberto Campos Neto operou violentamente, para mudar as expectativas da economia, forçar o aumento da taxa de juros e obrigar o governo a cortar gastos, favorecendo o capital financeiro.
No plano ideológico, isso permitiu que a retórica dos riscos fiscais ganhasse a quebra-de-braço, apesar de não existir uma crise econômica à vista no país.
Se mantidas as regras atuais do arcabouço fiscal, o déficit primário não seria explosivo, diferente dos custos de rolagem da dívida, cujo pagamento de juros gira em torno de 6% do PIB, demonstrando que sua trajetória é determinada sobretudo pela evolução das despesas financeiras e dos próprios gastos tributários.
O novo presidente do BC, Gabriel Galípolo, sabe que essas dimensões são esquecidas pela Faria Lima, que, ademais, não considera o desequilíbrio fiscal produzido pelo último governo, nem reconhece os efeitos multiplicadores e redistributivos nas áreas da saúde, educação e previdência – que justificam uma regra de gasto diferente dos parâmetros definidos pelo arcabouço fiscal.
Tampouco defende o reajuste em termos reais do salário-mínimo, enquanto instrumento para reduzir a desigualdade e a pobreza na sociedade.
Na verdade, o mercado financeiro, seja a Febraban, sejam os garotos da Faria Lima, quer o retorno da política de austeridade fiscal, patrocinada pela EC 95, que reduziu o papel do Estado e tirou o pobre do orçamento, como proposto hoje pela PEC dos deputados Kataguiri, Pedro Paulo e Júlio Lopes.
O pacote de Haddad reduz danos
Sem mediação o governo não se sustenta e sem mudança da correlação de forças não avança. Haddad propôs uma alternativa ao pacote da Faria Lima, que teria graves consequências sobre a nossa base social.
Seu pacote tem por objetivo garantir o cumprimento das metas do resultado do primário, bem como permitir que o ritmo de crescimento das despesas obrigatórias seja compatível com seu limite de gasto, para não inviabilizar as despesas discricionárias, e, portanto, a continuidade dos investimentos até 2026.
Em especial, retoma uma promessa de campanha, prevendo o aumento da isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil, beneficiando 36 milhões de contribuintes, cuja renúncia será compensada com a tributação de quem recebe um montante superior a R$ 50 mil por mês.
Propõe, ainda, o fim dos supersalários e dos privilégios dos militares.
Não altera o seguro-desemprego, limita o crescimento das emendas parlamentares e mantém os pisos da saúde e educação, além de ter rejeitado as medidas de desvinculação de aposentadorias e benefícios ao salário-mínimo.
Apesar da clara tentativa de redução de danos, o pacote significará um corte de R$ 30,6 bilhões em 2025 e de 41,3 bilhões em 2026, mexendo em temas sensíveis como o salário-mínimo, o bolsa família, o abono salarial, o BPC (Benefício de Prestação Continuada) e o próprio Fundeb (Fundo Nacional de Educação Básica).
Além de corrigir eventuais distorções, com impacto ainda incerto sobre a cobertura desses programas, haverá diminuição do valor do abono salarial no médio prazo (1,5 s.m.), e, embora tenha colocado uma trava de 2,5% para o reajuste do salário-mínimo, manteve a regra que reflete o crescimento do PIB de dois anos anteriores.
Os desafios para a aprovação do pacote
As medidas do pacote estão sendo ainda detalhadas e serão encaminhadas ao Congresso por meio de Projetos de Emenda Constitucional e Projetos de Lei.
Se a negociação em torno das emendas parlamentares facilita a aprovação do pacote do Haddad, o erro de calibragem da tática eleitoral, que fragilizou o Partido dos Trabalhadores e as esquerdas nas eleições municipais, favorece a barganha do mercado em favor do pacote da Faria Lima no Congresso.
Além do mais, como as tensões na Frente Ampla tendem a se ampliar com a proximidade das eleições presidenciais, o governo corre o risco de ter parte da sua base de apoio parlamentar cooptada, como se já não fosse difícil explicar os cortes aos nossos aliados, apesar da redução de danos, sobretudo do salário-mínimo (âncora salarial da economia).
Se se quer proteger as camadas populares e médias do pacote da Faria Lima e do aumento da inflação causada pelo rentismo, esses setores precisam ter plena consciência do cerco sofrido pelo governo no quadro de enfrentamento com o bolsonarismo.
De modo que se Lula quer manter sua popularidade para viabilizar sua reeleição, sua agenda da receita deve tramitar em regime de urgência junto com o pacote de Haddad, colocando a pauta da distribuição de renda e riqueza no centro da conjuntura.
As condições políticas, que devem ser construídas para viabilizar sua aprovação, acabarão permitindo que o pacote de Haddad tenha maiores chances de não ser deformado pelo mercado e pela oposição.
Radicalizar a mobilização da sociedade em torno da pauta da redistribuição de renda e riqueza
Dificilmente essa pauta avança sem a mobilização da sociedade para mudar a correlação de forças no Congresso.
Sem desconsiderar a reforma tributária em curso, os partidos progressistas, as centrais sindicais, os movimentos sociais e a juventude devem defender a proposta do governo de tributar os super-ricos, garantindo a isenção do IRPF de quem ganha até R$ 5 mil mensais.
Mudando a qualidade da intervenção do campo democrático e popular, isso não impede que se radicalize esse eixo em torno de um programa mínimo, lutando pela aprovação do imposto sobre lucros e dividendos, ou ainda, pela revisão dos subsídios tributários, financeiros e creditícios da União, que alcançaram R$ 700 bilhões em 2023, segundo estudo da Instituição Fiscal Independente (IFI).
Na mesma linha, seguindo as experiências internacionais, podemos lançar uma campanha nacional pela retirada dos investimentos estratégicos do cômputo dos limites do arcabouço e do resultado do primário, que tenham alto efeito multiplicador e redistributivo, contribuindo para promover setores industriais que perderam força e dinamismo depois do golpe contra a democracia em 2016.
Para garantir a governabilidade de Lula e para resistir à ofensiva do capital financeiro e da extrema direita, é fundamental que o campo democrático e popular tenha clareza dos projetos em disputa, em favor do desenvolvimento, da reindustrialização, do combate à desigualdade e da sustentabilidade ambiental.
Apesar de mais um recuo, a estratégia defensiva do governo aponta na direção correta, ao colocar a pauta da distribuição de renda e riqueza no centro da conjuntura, que pode favorecer o acúmulo de forças da nossa hegemonia nas eleições presidenciais de 2026.
*Carlos Ocké é economista e militante do PT-RJ.
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.