O nazismo fez escola entre suas vítimas, mas a bestialidade não legitima o sionismo
Por Roberto Amaral, compartilhado de 082 Notícias
“Os agentes das carnificinas, o governo de Israel e os nazistas, cometeram crimes contra a humanidade e têm de responder perante a história. Seus crimes não são comparáveis. São um só” – Luiz Eduardo Soares, As palavras apodrecem
Em 1943, a chamada grande guerra estava em pleno curso e a esperança de vitória dos aliados renascera com a derrota dos alemães diante dos soviéticos na batalha de Leningrado. Lutava-se praticamente em toda a Europa, e em todas as frentes. Na contramão das invasões dos exércitos alemães, crescia a resistência quase suicida dos partisans e dos maquis. Eram as forças irregulares da Segunda Guerra. Suas armas, legitimadas pelas circunstâncias, eram a emboscada, a sabotagem, o que estivesse à mão, o que fosse possível, o que fosse útil para desestabilizar o adversário. Visavam a intimidar, abater o moral dos nazistas, retardar ou paralisá-los por meio do terror.
No dia 27 de maio de 1942, o grupo tcheco de resistência (recrutado e treinado, para essa operação, pelo Special Operations Executive, SOE, do Reino Unido) assassinou, em Praga, o oficial SS Reinhard Heydrich, na chamada “Operação Antropoide”. Eis a motivação para o que ficou conhecido como Massacre de Lídice, uma cidadezinha de pouco mais de 500 habitantes, ao norte da capital tcheca. A represália nazista não se fez esperar. No dia 1º de junho a cidade foi invadida, todas as suas construções destruídas, inclusive o cemitério, os homens fuzilados, as mulheres e crianças sobreviventes encaminhadas para campos de extermínio. A vila foi incendiada; as casas que se conservaram de pé, demolidas.
Essa política de terra arrasada foi registrada pela história como ato de barbárie de um Estado fascista, poderosíssimo, contra uma população indefesa. Barbárie e covardia. O Brasil, solidário na dor, batizou de Lídice um distrito do município fluminense de Rio Claro. Diversos países fizeram o mesmo.
Todos lembramos, e os meios de comunicação não permitem que os mais alienados esqueçam o que ocorreu no último 7 de outubro: militantes do Hamas, grupo árabe de resistência à ocupação das terras palestinas pelo Estado de Israel, em ato condenado em todo o mundo como terrorismo, invadiu um festival de música eletrônica num Kibutz em Israel (próximo à Faixa de Gaza), assassinou algo perto de 1.400 pessoas e sequestrou outras 120 ou 140, dependendo da fonte. O número de mortos foi ampliado pela ação das forças israelenses, que atiraram, propositadamente ou não, contra cidadãos judeus.
A resposta do Estado de Israel, uma ocupação colonial, financiada e protegida pelos EUA e a Europa ocidental, também não se fez esperar. A retaliação se desenha numa operação de aniquilamento que já matou mais de 30 mil civis, em sua maioria mulheres, crianças e idosos, e em poucos dias deverá comemorar a destruição de toda a infraestrutura de Gaza, todas as suas construções civis, todos os hospitais. A paisagem de hoje é a dos destroços – cadáveres empilhados, covas coletivas, não há mais escolas nem abrigos, escasseia a água potável, crianças, mulheres e homens de todas as idades mutilados. Não há mais escolas nem abrigos. E o Ocidente sabota a ajuda humanitária da ONU.
Mas essa ainda não é a herança toda, pois a morte se aproxima de Rafah, no Sul da Faixa, acercando-se cada vez mais do Egito ao tempo em que o fogo de Israel fustiga as fronteiras do Líbano.
Gaza, como se sabe, tem uma população de cerca de 2,6 milhões, espremida numa faixa que se estreita permanentemente, segundo a fome de terra de seu inimigo luciferino. Ali, os ataques mortais se fazem por terra e pelo ar, com tanques , aviões, drones e foguetes. Mas, como em Lídice, não há guerra, não há “conflito”, como bem denunciou o presidente Lula, simplesmente porque não existem forças em confronto: de um lado o poderoso exército invasor, furioso; de outro, uma população civil desarmada, sem teto, e sem expectativa de futuro, clamando por água e alimentos, exilada em sua própria terra. De novo, como punição, a política de terra arrasada.
O horror não começou no 7 de outubro. E o ataque a Gaza não é o primeiro; mas pode ser o último, pois em breve não haverá mais Gaza. Em 1982, nos dias 16 a 20 de setembro, grupos de milicianos invadiram os campos de refugiados palestinos de Sabra e Shatila, deixando para trás, assassinados, algo como 2 mil civis palestinos desarmados. Para aproveitar a viagem, mataram cem libaneses e sírios. A autoria intelectual da carnificina é atribuída a Ariel Sharon, comandante do exército da ocupação e futuro primeiro-ministro de Israel.
O nazismo fez escola entre suas vítimas, mas a bestialidade não legitima o sionismo, fundamento do Estado judeu, e muito menos absolve o genocídio continuado dos palestinos.
Gaza é o outro lado do Gueto de Varsóvia. Os palestinos de hoje revivem, com dor inimaginável, os genocídios dos armênios, dos ciganos, dos povos que há séculos vêm sendo dizimados, como foram os cristãos, que também se esquecem de seu martírio, como foram os peregrinos sem destino, e caminhantes dos desertos. Os vitimados de ontem são os algozes de hoje. Espanta que o massacrante de nossos dias seja o Estado de um povo que sofreu o Holocausto, além de discriminação e perseguição implacável por séculos; povo que ainda hoje é objeto de preconceito e discriminação.
O trauma, por maior que seja a violência, não ensina. É uma não-experiência. Algozes não são pedagogos.
É monstruoso e inaceitável o silêncio dos governos e dos líderes do mundo que se diz desenvolvido e “civilizado” que está na raiz das tragédias humanas do Oriente, da Ásia e da África. É constrangedora a incapacidade de ação das instituições de defesa dos direitos humanos – violentados, neste caso, de fio a pavio. É chocante a invalidez paquidérmica da ONU, condicionada por um conselho de segurança manietado pelo poder de veto dos EUA. Outra tragédia é a falência do Tribunal Penal Internacional, comprometido com os interesses bélicos da Otan, assinalando o suicídio da comunidade internacional. É particularmente constrangedor o silêncio dos estados árabes.
O Holocausto, hoje como ontem, revela nossa miséria moral; ontem e agora, os Estados poderosos, a começar pelos EUA, podendo fazer cessar a carnificina, a alimentam, e as grandes nações permanecem silentes diante dos massacres e dos genocídios como se a morte dos povos ditos de “segunda classe” – africanos, árabes, ciganos, armênios, não lhes dissesse respeito. E assim, pela omissão e pelo silêncio, o mundo desenvolvido que se autoconsidera “civilizado” associou-se ao crime de lesa-humanidade.
Desse opróbio, porém, salvou-nos o presidente Lula. O Brasil, por seu intermédio, quebrou o gelo da omissão. E não é ele quem deve satisfações ao protetorado sionista, mas os dirigentes deste, consabidos criminosos de guerra, que devem um pedido de desculpas à humanidade agredida, conforme observou Celso Amorim. Lula ergueu-se da mediocridade circundante, covarde, e emprestou dignidade ao Brasil, que se afirma, quando nossa política externa volta aos seus grandes dias.
É rico de ensinamentos o atrito do presidente Lula com o enclave sionista, o qual não admite restrições ao exercício do auto-atribuído direito de trucidar palestinos, preferencialmente desarmados, no gueto de Gaza e alhures, para consolidar o seu Lebensraum.
Além de expor à luz do meio dia o cinismo da comunidade internacional, que, muito verbal e ativa noutros casos (como na Guerra da Ucrânia), neste espera sentada que a Palestina tombe como o arraial de Canudos para chamar o genocídio de genocídio. O caso faz cair como um viaduto a máscara de muitos “progressistas” que votaram no petista no último pleito porque do outro lado estava quem estava, e assim os fatos expõem, na política, os limites e contradições da frente formada em 2022.
A aliança heterodoxa realizou seu destino quando contribuiu para a historicamente necessária eleição de Lula. Mas, sem surpresa para os estrategistas, o conglomerado político se revela incapaz de sustentar um governo de centro-esquerda, o projeto de Lula e do PT, que o presidente, neste momento, se revela disposto a levar a cabo, quando parecem vencidas as ameaças que circundavam a estabilidade do governo e a continuidade do mandato presidencial.
Os apoiadores (mais que aliados) recentes atrelam-se a um programa mínimo, baseado na manutenção da “austeridade fiscal” (não tão austera para o andar de cima), melhora do clima das relações federativas e pouco arrojo na diplomacia, pavimentando o caminho para a tão sonhada “terceira via”. Mas esta suicidou-se com a socialdemocracia paulista.
Em síntese, o suposto na adesão: tudo deve ficar como dantes no Castelo de Abrantes.
Eis que Lula sobe o tom e, num gesto de ousadia, imbuído dos princípios elencados no art. 4º da Constituição brasileira, faz, na África, uma declaração que aponta para a óbvia similitude entre o massacre em curso e aqueles promovidos por Hitler contra os judeus, ciganos, comunistas, gays, doentes físicos e mentais… Correlação que, de resto, centenas de judeus não intoxicados pela hasbará, a incansável máquina de propaganda sionista, vêm fazendo há décadas (o depoimento comovente do judeu Edgar Morin está amplamente disponível nas redes).
Horrorizados como jamais se mostraram diante do horror, colunistas, comentaristas, politicólogos, congressistas etc. saem de suas tocas para repudiar, em uníssono, não o crime, mas o seu delator. Colonizados, nossos intelectuais se transformam em correias de transmissão dos interesses da ideologia expedida dos centros de controle das grandes potências, vale dizer, do Pentágono.
Na malhação do Judas fora de época que testemunhamos na última semana (e que em certos momentos trazia à lembrança o Febeapá do inesquecível Stanislaw Ponte Preta), escapou aos nossos diligentes “formadores de opinião” a oportunidade de fazer reparos à ação dos EUA, que pela terceira vez bloquearam, no Conselho de Segurança da ONU, uma resolução visando ao cessar-fogo no gueto de Gaza – fazendo-se acompanhar, desta feita, pela omissão covarde de sua ex-metrópole, hoje colônia.
Ao servilismo associa-se o velho complexo de vira-lata, que não entende que o Brasil possa, na cena internacional, falar de pé, erguer a voz e impor-se como sujeito: isto é, pensar com sua própria cabeça, ter voz própria e caminhar com suas próprias pernas.
É lamentável.
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Semântica frívola – Criou-se no Brasil a expressão “mortos e desaparecidos”. A semântica é falsa, pois não existem “desaparecidos”, mas tão-só mortos. Mário Alves não está desaparecido, está morto, havendo sido torturado e assassinado nas dependências do quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, na rua Barão de Mesquita. Stuart Angel não está desaparecido, está morto, torturado e assassinado que foi na Base Aérea do Galeão, também no Rio. Todos os desaparecidos são mortos da ditadura, que os matou e desapareceu com os corpos.
Saudação a quem tem coragem – Na última quarta-feira, diante de um auditório da UnB absolutamente lotado, o jornalista Breno Altman lançou seu opúsculo Contra o sionismo – retrato de uma doutrina colonial e racista (ed. Alameda). Trata-se de livro de combate, escrito com a indignação de um judeu comunista que se autodefine como aliado da causa palestina e inimigo do sionismo.
Boquirroto – Perfeita, a interpelação feita pelo senador Omar Aziz ao presidente daquela Casa, que se permitira qualificar como “inadequada” a fala de Lula sobre o massacre, cobrando do presidente Lula “uma retratação”. O ambicioso Pacheco melhor faria se não apenas se ativesse à verdade histórica e ao necessário equilíbrio entre os poderes da República, mas deixasse a cargo das outras nações a tarefa de cuidar de seus interesses.
Perdeu uma ótima oportunidade de ficar calado.
*Com a colaboração de Pedro Amaral