Por Celso Sabadin, jornalista, professor e cineasta
Estou em estado de graça! Assisti, na sequência, dois documentários sobre dois monstros da música brasileira que me emocionaram em níveis superlativos: “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor” e “Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos”.
LUPICÍNIO RODRIGUES – CONFISSÕES DE UM SOFREDOR
Acredito que todos os brasileiros e brasileiras conhecem mais da obra de Lupicínio Rodrigues do que se tem consciência. Afinal, segundo registra o documentário “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor”, o poeta e escritor Haroldo de Campos testemunhou pessoalmente o momento em que o popular Lupi cunhou uma das maiores expressões da nossa cultura popular: “Quem vê as pingas que eu tomo não vê os tombos que eu levo”.
A máxima de Lupicínio não virou música (que pena!), mas outros momentos poéticos viraram: “Esses moços, pobres moços/Ah! Se soubessem o que eu sei/Não amavam, não passavam/Aquilo que
eu já passei” ou “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor/E por ele quase morrer/E depois encontrá-lo em um braço/ Que nem um pedaço do meu pode ser?”. Ou então “Felicidade foi-se embora/ E a saudade no meu peito ainda mora/E é por isso que eu gosto lá de fora/ Porque eu sei que a falsidade não vigora”. O site letra.mus.br registra cerca de uma centena de obras de Lupicínio, isso sem falar em várias outras que – segundo o próprio documentado – ele criava durante as bebedeiras da madrugada, não gravava, e jamais lembrava depois.
Após passar por festivais e salas de cinema, “Lupicínio Rodrigues — Confissões de Um Sofredor” chega à TV através do Canal Curta (veja as datas e horários das exibições no final deste texto), consolidando um completo e precioso inventário de sua vida e obra.
Sim, há um riquíssimo material de arquivo, muitos depoimentos importantes, informações às pencas, e um exaustivo levantamento da vida e da obra do compositor. Há inclusive uma insinuação que Lupicínio teria se antecipado a João Gilberto no jeito manso de cantar baixinho, num momento em que a música brasileira era dominada por vozeirões estilo Francisco Alves e Nelson Gonçalves.
A afirmativa, porém, parece não passar do nível da provocação, na medida em que o primeiro disco em que Lupi decide finalmente cantar (após 20 anos de sucessos como compositor) data de 1962, portanto quatro anos após o surgimento da Bossa Nova. Mas provocar é bom.
“Lupicínio Rodrigues — Confissões de um Sofredor”, porém, não se mantém “apenas” (notem as aspas) no campo musical. Sintonizado com as pautas contemporâneas, o longa também aborda a questão racial no Rio Grande do Sul, levantando através de preciosas imagens de arquivo um pouco da história da região de Ilhota, um verdadeiro gueto dentro da Porto Alegre, onde a população negra vivia uma espécie de sociedade a parte, com seus cinemas, bares, locais de lazer e até times de futebol, contra os quais os brancos não aceitavam jogar.
Vale um destaque especial para a deliciosa história que o documentário conta sobre como Lupicínio se tornou gremista e compôs o hino do time. Não, não vou contar aqui. Tem que ver o filme.
A produção do longa também teve a bem-vinda ideia de levantar a árvore genealógica de Lupicínio, o que acabou rendendo um ótimo e emocionante final.
“Lupicínio Rodrigues — Confissões de um Sofredor” foi premiado como Melhor Edição e Melhor Trilha Sonora na 17ª edição do Fest Aruanda 2022; recebeu o prêmio do público de melhor documentário no Festival Internacional da Língua Portuguesa, em Lisboa; e participou de festivais no Brasil e no exterior, como a 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2023), IN-EDIT 2023, 46º Festival Guarnicê de Cinema (2023), 27th Inffinito Brazilian Film Festival (EUA, 2023) e Philadelphia Latino Film Festival 2023.
A direção é de Alfredo Manevy, com roteiro de Marcia Paraiso e do próprio diretor.
Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor. Próximas exibições no Canal Curta: 04 de maio, sábado, às 15h e 06 de maio, domingo, às 22h10. Também estará no streaming através do CurtaOn, disponível no Prime Video Channels — da Amazon —, na Claro tv+ e no site oficial da plataforma (CurtaOn܂com܂br).
“DORIVAL CAYMMI – UM HOMEM DE AFETOS”
“Carrego minha dose natural de simpatia porque é o reflexo de minha via interior”. Esta é uma das primeiras frases, ditas pelo próprio documentado, do longa “Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos”, que estreou nos cinemas na última quinta-feira, 25/04.
A partir daí, por cerca de 90 minutos, o espectador delicia-se com os sorrisos, as canções, a tal dose natural de simpatia, e – claro – os afetos deste que é um dos maiores compositores da música brasileira. Sim, “Caymmi é, e não foi”, como diz Gilberto Gil em seu depoimento.
Escrito, dirigido e produzido por Daniela Broitman, “Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos” é um generoso e afetuoso desfile de belíssimas canções e não menos belíssimas imagens entrecortadas por um precioso material de arquivo e depoimentos de toda a sua famosa família. Mais Caetano e Gil, óbvio, que não poderiam faltar, jamais. Não, não tem Nelson Motta. Tudo magistralmente editado pela montadora Jordana Berg, uma das maiores especialistas em transformar toneladas de material bruto em filmes maravilhosos.
A cereja do bolo é uma divertida e descontraída entrevista que Caymmi concedeu em 1994, e que permanecia inédita até então. Isso sem falar nas rápidas porém históricas cenas de uma estranha versão cinematográfica estadunidense de “Capitães de Areia” na qual – não me perguntem o motivo – Caymmi interpreta um barqueiro ao som de “minha jangada vai sair pro mar” cantada em russo.
Após assistir a “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor” e “Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos”, inevitavelmente me veio à mente – de forma melancólica – a famosa canção de Rita Lee: “Ai ai meu Deus, o que foi que aconteceu com a Música Popular Brasileira?”
Texto publicado em www.planetatela.com.br