A luta para ser humano

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Premiação reconhece o trabalho de lideranças ameaçadas, perseguidas e discriminadas no Brasil

A escritora Conceição Evaristo recebe o prêmio João Canuto de Direitos Humanos: "O racismo está saindo do armário". Foto Marizilda Cruppe
A escritora Conceição Evaristo recebe o prêmio João Canuto de Direitos Humanos: “O racismo está saindo do armário”. Foto Marizilda Cruppe

O que têm em comum, uma escritora negra, um jovem advogado, um frade dominicano, um ator da Globo e o cacique de uma tribo da Amazônia? Todos, de um jeito ou de outro, em algum momento da vida, foram perseguidos, ameaçados ou discriminados. Seu crime? Tentar ser humano, na melhor e mais básica acepção da palavra. Aquela aprovada pela ONU, por exemplo, que fala que todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e que devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. Lembra?

E foi exatamente na Semana em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 69 anos, que oito lideranças e entidades que lutam bravamente para que ela seja cumprida foram homenageadas com o Prêmio João Canuto. João quem? Pois é. Esse é um dos muitos brasileiros que perdeu a vida por conta dessa mistura das palavras humanos e direitos. Aliás, só este ano foram 60 assassinados no país por este mesmo motivo. O João do prêmio levou 18 tiros em dezembro de 1985 porque defendia a reforma agrária. Foram necessários 16 anos e muita pressão da Organização dos Estados Americanos (OEA) para que os mandantes, dois fazendeiros do Pará, fossem presos. Um deles, não por acaso, era também prefeito da cidade.

Dos oito homenageados na cerimônia desta segunda-feira, 11 de novembro, no CCBB, no Centro do Rio, dois ainda precisam de escolta policial para enfrentar as ameaças de morte. Um deles, o advogado José Vargas Jr., teve que se mudar com a mulher e as filhas. Vargas defende as famílias das vítimas de uma chacina que deixou dez trabalhadores rurais mortos em Pau D`Arco, no sudeste do Pará. O outro ameaçado é o cacique Odair José Borari, ou Dadá Borari, como é conhecido. Ele já foi sequestrado e espancado por jagunços em 2007 e, desde então, continua recebendo ameaças de madeireiras no oeste do Pará. Entre as diversas lutas de Dadá, estão a demarcação da Terra Indígena Maró, a manutenção da floresta, a preservação do modo de vida do seu povo e até o direito de dar nomes indígenas aos seus filhos.




O cacique Dadá Borari foi o último premiado da noite, fez parte do agradecimento na sua língua, o "nheengatu", cantou e dançou. Foto Marizilda Cruppe
O cacique Dadá Borari foi o último premiado da noite, fez parte do agradecimento na sua língua, o “nheengatu”, cantou e dançou. Foto Marizilda Cruppe

O ator Silvero Pereira, o Nonato, da novela “A Força do Querer”, outro premiado da noite, lembrou que mais de 250 homossexuais foram mortos só este ano no Brasil. Dado que, segundo ele, não reflete a real violência sofrida pela comunidade LGBT no país. Silvero falou sobre a infância pobre no Ceará, os buracos cavados em busca de água e o prato único de arroz branco que dividia com os irmãos no almoço. E citou Belchior para dizer que era um sujeito de sorte: “Apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte”.

A escritora e poeta Conceição Evaristo, doutora em literatura e vencedora do prêmio Jabuti, em 2015, também falou do passado, da infância na favela do Pendura Saia, em Belo Horizonte, e das dificuldades que teve para estudar e se formar enquanto trabalhava como empregada doméstica. Conceição diz que seus textos são um exercício de “escrevivência” e que o “racismo está saindo do armário no Brasil”. Concluiu os agradecimentos com um poema sobre a corriqueira e histórica morte de negros no país.

O ator Silvero Pereira, o Nonato, da novela “A Força do Querer”, lembrou os homossexuais mortos em 2017. Foto Marizilda Cruppe
O ator Silvero Pereira, o Nonato, da novela “A Força do Querer”, lembrou os homossexuais mortos em 2017. Foto Marizilda Cruppe

Por quase três horas, no evento promovido pelo movimento Humanos Direitos, histórias de arbítrios e desmandos no Brasil foram contadas, uma depois da outra. Os jovens da ONG Justiça Global registraram que 2017 foi ano em que mais se matou quilombolas e pediu ajuda para a campanha “Caveirão Não! Favelas pela vida e contra as operações”. Nos últimos 20 anos, 16 mil pessoas morreram em operações policiais no Rio. A maior parte dos casos registrados como autos de resistência, quando o agente alega ter atirado em legítima defesa. Os representantes do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) lembraram das vítimas da tragédia de Mariana. Ana de Souza Pinto, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que representou o frei dominicano Xavier Plassat, falou sobre os tempos sombrios em que vivemos e sobre a escravidão contemporânea que volta a crescer no país.

Em cada poltrona do auditório do CCBB um livro com mais de 300 páginas funcionava como uma espécie de dever de casa para os convidados. Um balanço trágico dos direitos humanos no Brasil em 2017: reitores de universidades presos em Minas e em Santa Catarina, greve de fome contra a Reforma de Previdência em Brasília, 1.200 professores demitidos por conta da reforma trabalhista, seis mil trabalhadores despejados em Marabá, no Pará, reservas indígenas e quilombolas que não são demarcadas, ameaças, perseguições, discriminações e mortes, muitas mortes. Nada disso, no entanto, parece desanimar esse povo: “O Brasil é bonito e o melhor ainda está por vir”, dizia a mensagem de mais uma homenageada, a professora da ameaçada UERJ Vera Malaguti. Será?

Na foto final, os homenageados da noite e os organizadores do evento. Apesar de tudo, ainda resta esperança. Foto Marizilda Cruppe
Na foto final, os homenageados da noite e os organizadores do evento. Apesar de tudo, ainda resta esperança. Foto Marizilda Cruppe

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