Mais de 60 famílias estão ocupando área que pretendem transformar na primeira reserva indígena em contexto urbano do Nordeste
Por Adriano Alves, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: A cacica Valquíria na ocupação: indígenas urbanos de diferentes etnias unidos na luta pela terra em Pernambuco (Foto: Adriano Alves)
A área de um antigo polo industrial desativado se tornou um território de resistência indígena na Região Metropolitana do Recife. Desde 31 de dezembro, quem passa pela Estrada Monjope de Igarassu (PE), a pouco mais de 28 km da capital, nota faixas de tecido nas cores vermelho, preto e branco. Aos mais atenciosos, a palavra Karaxuwanassu indica o povo pluriétnico que acampa no local.
Atualmente, já são mais de 60 famílias indígenas ocupando o terreno e, segundo a cacica Valquíria Kyalonãn, o grupo aumenta gradativamente com a chegada de “mais parentes”. Na maioria, são indígenas que vivem nas áreas urbanas das cidades vizinhas em situação de vulnerabilidade social. Eles reivindicam o território que denominam como ancestral e que, segundo eles, foi indicado por entidades após um de seus rituais religiosos.
“A gente recebeu os nossos encantados da natureza sagrada e foram eles, Kaetés, que nos guiaram até essa terra”, explica a cacica Valquíria, de 57anos, referindo-se ao povo indígena que habitava o território antes do que ela chama “invasão portuguesa”.
Karaxuwanassu é um grupo que reúne diversas etnias indígenas de Pernambuco e outros estados brasileiros, além de alguns que vieram de outros países da Abiayala – que na língua do povo Kuna significa América – como Venezuela, Bolívia e Peru. A proposta é transformar a área ocupada na Aldeia Mataro Kaetés, que seria a primeira reserva indígena em contexto urbano do Nordeste.
O grande povo guerreiro
Karaxuwanassu significa o grande povo guerreiro em Brobo, língua ancestral. A união desse povo surgiu a partir da Associação Indígena em Contexto Urbano Karaxuwanassu – Assicuka – criada em janeiro de 2021 para lutar pelos direitos desses indígenas que ficavam sem assistência pública por não estarem inseridos em aldeias.
A primeira mobilização foi pela vacina contra a gripe, depois pela imunização como grupo prioritário na pandemia de Covid-19. A cacica afirma que por conta da falta de vacinas, negadas com a justificativa de não terem um território, “morreram muitos idosos, pessoas com mais de 100 anos de vida” entre os indígenas urbanos da capital pernambucana. Então, foi criada a associação para representar a todos, inclusive permitindo que ocupem cadeiras nos conselhos públicos.
Durante o período de isolamento, quando as reuniões foram transferidas para o online, o grupo cresceu com a participação de outros estados e países. “A gente viu que eram muitos, não éramos só nós e tínhamos que ter esse olhar mais profundo com relação a essas políticas”, lembra a cacica.
“A gente se juntava também para fazer nossos rituais, porque em muitos lugares a gente não podia fazer, muita gente estereotipava, sempre com preconceito. Falavam até dos nossos xanducas, que é o cachimbo da gente, diziam que eram outras coisas e que não tinha nada a ver o que a gente estava fazendo”, relata.
Resgate ancestral
Sentado em um tronco de madeira com o seu xanduca em mãos, o pajé Juruna, 42 anos, conta que um grande desafio da articulação dos povos indígenas, que atualmente estão vivendo nas áreas urbanas, é a insegurança que alguns sentem em falar que são indígenas.
“O nosso povo passou muito tempo proibido de falar a língua e praticar os rituais. Muitos foram violentados nesse processo, ou vêm de famílias que também passaram por isso, então trouxeram essas marcas que são dos nossos antepassados”, explica.
O indígena vive da terra; antes mesmo da invasão a gente tinha nossas terras, a gente já vivia da agrofloresta. A gente comia a semente, jogava e nascia. Hoje, a mão inimiga do homem acabou com tudo e a gente agora está recuperando
Rubenita KariawaneIndígena da etnia Wassú-Cocal
O pajé atua há quase três décadas no resgate das línguas maternas e dos costumes desses povos. “Comecei a fazer essa pesquisa da língua através dos documentos e com os próprios mais velhos, que diziam como a gente falava. Tinha pouco material e comecei com o tronco linguístico, que muitos chamavam de tupi-guarani”, conta.
Entre as famílias da ocupação são vários os idiomas, falam o português e o espanhol, além de mais de cinco dialetos indígenas. Juruna explica que por causa das perseguições históricas, muitas famílias indígenas saíram das suas comunidades e se espalharam pelo mundo. A família dele se instalou no Coque, comunidade na área central do Recife, marcada pelo o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade, onde se somam mais outras 60 famílias de indígenas. Aos poucos, elas estão se mudando para a ocupação.
“Estamos fortalecendo a Cultura através do nosso ritual sagrado, o Toré. Os nossos encantados indicaram essa terra, que somos os seus protetores e aqui que temos que ficar. Estamos protegendo, identificando muitas áreas que estão degradadas e já estamos começando a plantar algumas mudas de árvores e da nossa medicina, fazendo tratamento em alguns parentes que precisam”, conta o líder religioso.
Terra sagrada
A área ocupada pelos indígenas tem aproximadamente 120 hectares e é conhecida como Polo Empresarial Ginetta, empreendimento em liquidação judicial, mas registros históricos apontam que o território foi berço dos Caetés no século XVI. Rubenita Kariawane, 51, da etnia Wassú-Cocal, nasceu em uma comunidade indígena, entre os estados de Pernambuco e Alagoas, e saiu para estudar. Na ocupação, ela tem atuado na implantação dos Sistemas Agroflorestais, uma atividade agrícola que respeita o ecossistema local.
É uma questão de Justiça estarmos aqui. Aqui foram dizimados os Paratiós e nós, todos os indígenas brasileiros, somos seus descendentes. Somos bisnetas daquelas mulheres que foram estupradas, violentadas e mantidas em cárcere
Adi KayanyIndígena
Em pouco tempo de trabalho, eles já plantam sementes de feijão, milho e outras culturas na área. “Queira ou não, o indígena vive da terra; antes mesmo da invasão a gente tinha nossas terras, a gente já vivia da agrofloresta. A gente comia a semente, jogava e nascia. Hoje, a mão inimiga do homem acabou com tudo e a gente agora está recuperando”, afirma.
Antônio Gonzales, 31, capina uma área na entrada do terreno junto à Rubenita e o pajé. Os canteiros serão destinados a novas sementes. O indígena venezuelano dos Guarwao foi para a ocupação na cidade pernambucana com toda a família após uma peregrinação por estados brasileiros. Desde que saiu de seu país, em 2017, residiu em Boa Vista-RR, Manaus-AM, São Luiz-MA e chegou ao Recife em 2019, onde se instalou e sobreviveu de artesanatos.
Gonzales descreve a terra como sagrada. “Foi uma coisa espiritual que me chamou aqui. A terra me chamou a atenção. Eu como agricultor, me agradou muito a terra, para trabalharmos. Pra mim foi um suspiro, pois quando cheguei aqui me senti livre. Me encontro muito feliz com os nossos parentes, porque somos irmãos de sangue”, diz em espanhol.
“A revolução é indígena”
O que um dia pode vir a ser a aldeia Mataro Kaetés ainda é um terreno que pertence à prefeitura e tem grande especulação imobiliária. Desde que iniciaram a ocupação, os indígenas convivem com a ameaça de despejo. A Prefeitura de Igarassu chegou a dar entrada no pedido de reintegração de posse, justificando que no local seria construída uma escola, mas a Assicuka conseguiu na justiça a suspensão temporária da ação.
Adi Kayany, 44, é natural de Pesqueira-PE e residia em Recife, antes de ir com a família para a ocupação, onde ajuda na comunicação e no cuidado com as crianças. “Aqui todo mundo se ajuda, todo mundo faz alguma coisa. Planta, atende na portaria… a gente é bem unido nessa questão de delimitar o que se faz, porque a gente tem que se unir cada vez mais”, explica.
“É uma questão de Justiça estarmos aqui. Aqui foram dizimados os Paratiós e nós, todos os indígenas brasileiros, somos seus descendentes. Somos bisnetas daquelas mulheres que foram estupradas, violentadas e mantidas em cárcere. Estamos aqui como guerreiras cobrando essa injustiça e honrando toda essa história que o livro não conta, para mostrar para o Brasil que o Brasil não foi descoberto, que aqui foi uma invasão”, pontua.