Por Thaís Cavalcante, compartilhado de Projeto Colabora –
Profissionais da saúde, moradores e instituições locais encaram a precarização de serviços psicológicos com iniciativas que promovem a saúde mental na Maré
Ruas vazias, mentes cheias. O medo de pegar coronavírus ocupa os pensamentos dos moradores da Maré com uma intensidade ainda maior do que no resto da cidade, do país, do mundo. Outras ameaças cotidianas também atravessam a vida favelada, como o desemprego, a violência armada e a falta de direitos básicos. Para quem lida com questões psicológicas, a chegada da covid-19 fez os cuidados com a saúde mental serem ainda mais necessários. Seis meses depois, a flexibilização de atividades econômicas acontece, enquanto mais de 13 mil casos da doença são confirmados nas comunidades populares cariocas, segundo mapeamento do Painel Unificador Covid-19 Nas Favelas, divulgado no último dia 4 de outubro.
Os desafios dessa crise foram previstos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que tratou a pandemia não só como questão sanitária e humanitária, mas também de saúde mental. Cerca de 30% a 50% das pessoas que estão em situação de vulnerabilidade socioeconômica e psicossocial, como os moradores de favelas, têm mais chances de desenvolver algum sofrimento psíquico ou enfrentar agravamento dos sintomas.
Carlos César de Carvalho, psiquiatra do CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) Magal, dá suporte em seis Clínicas da Maré e atua nas 16 favelas do conjunto há mais de cinco anos. Ele afirma que os transtornos mentais são mecanismos de defesa que a mente desenvolve para lidar com determinadas situações. O alerta deve acontecer quando as sensações forem além do nível de proteção. “De maneira nenhuma sentir é um transtorno. Cada um vai ter um mecanismo para dar encaminhamento a esse sofrimento. Falar disso é um jeito importante de trabalhar essas questões”.
Anna Cláudia Neves, comunicadora de 45 anos e moradora da Salsa e Merengue, lida com ansiedade, síndrome do pânico e depressão há três anos. Sem conseguir renovar a receita para comprar os remédios controlados, teve crises de abstinência. “Eu chorava e tremia. Só depois das reações entendi que era pela falta dos remédios. Não tinha como ir na Clínica da Família porque a prioridade era me proteger do coronavírus”, relata.
Ainda que a Anvisa tenha mudado as regras para facilitar o recebimento de remédios em casa e para os pacientes poderem comprar medicamentos em maior quantidade, na favela não funciona assim. As incertezas de Neves também foram motivadas pela situação local. A Maré é o território popular com mais casos confirmados de coronavírus do Rio, somando 1.667 (até 4 de outubro), número certamente subestimado pela subnotificação (a cada dez moradores, apenas três foram testados ou diagnosticados). Para se ter uma ideia, o Painel Unificador Covid-19 Nas Favelas do Rio de Janeiro, feito a partir de relatos de moradores e lideranças comunitárias, revela que entre suspeitos e confirmados nas periferias são mais de 13.135 casos e 1.821 mortes.
Aumento na procura de atendimento
Todos os cidadãos têm direito à saúde mental no Brasil, assim como aos serviços públicos. Para os moradores de favelas, o anseio é atravessado por violências diversas – racial, de gênero, policial – e pela falta de acesso a prerrogativas básicas. Tais fatores também são importantes para o surgimento e agravamento de transtornos. “O aumento na procura por atendimento, muitas vezes por ansiedade ou depressão, é consequência do estresse a mais que a população da Maré enfrenta, muito ligado a vulnerabilidade social e econômica”, explica Carlos Cesar.
O acompanhamento em saúde mental para os mais de 140 mil moradores da Maré se dá pelas equipes de Atenção Primária da Clínica da Família. São elas: Augusto Boal, Jeremias Moraes da Silva, Diniz Batista dos Santos e o Centro Municipal de Saúde Américo Veloso. Boa parte dos atendimentos presenciais foi suspensa devido à pandemia, e a assistência nos CAPS precisou ser adaptada para o formato remoto. “A gente tem a questão do distanciamento social, de não poder estar tão próximo, e o uso da máscara às vezes nesse contato interpessoal é uma dificuldade. O CAPS funciona muito no coletivo, e esse contato durante a pandemia fica prejudicado, assim como a menor frequência dos pacientes indo ao serviço”, afirma Carlos César.
Uma alternativa foi oferecer serviços psicológicos por meio de canais digitais, que são permitidos por lei. Foi feito atendimento por telefone e online, além da reabertura de enfermarias de covid-19 exclusivas para pacientes. No CAPS Magal, por exemplo, o atendimento pelo WhatsApp e os grupos de discussão foram fundamentais para o acompanhamento. Carlos César conta que a solução alcança a muitos, mas não a todos. “Em algumas situações mais frágeis, as pessoas não têm acesso fácil ao telefone e à internet”. Assim, nos casos mais graves, o atendimento presencial foi mantido.
As estratégias de cuidado vão além de uma consulta. Os profissionais de saúde têm a liberdade de circular para visitas domiciliares, tentando manter a proximidade com os pacientes. Mas é insuficiente. A demanda aumentou durante a pandemia, mas o número de psicólogos, não. A 14ª edição do Boletim “De Olho no Corona!”, que abordou os impactos da crise sanitária na saúde mental da população da Maré, mostra isso. A necessidade de investimentos para a ampliação de atendimento psiquiátrico e psicológico é urgente. Principalmente quando o Sistema Único de Saúde (SUS) é a única alternativa.
Pobre tem problema mental sim, não é doença de rico. O trabalho exige mais da gente, a vida exige mais da gente. E a ideia é que eles fiquem confortáveis em saber que, perto deles, alguém que se importa
Neves aguarda há dois anos na fila do Sistema Nacional de Regulação (Sisreg) para receber atendimento psiquiátrico em uma das Clínicas da Maré. Depois do tratamento, ela tem o desejo de começar a Faculdade de Psicologia. Enquanto o momento não chega, dedica seu tempo e energia, junto com a irmã Simone Laur, no projeto Mentes da Maré, que beneficia cerca de 200 moradores, com apoio psicológico online e gratuito, desde março de 2020. Como forma de conscientização, no Setembro Amarelo, o projeto marcou os postes da favela com cartazes sobre ansiedade.
As tarefas do trabalho voluntário são feitas com notebook emprestado, dois celulares e pacotes de dados. “A gente está indo mesmo pelo interesse, metendo a cara. Queremos manter o projeto depois da pandemia, pois haverá crianças e mães que vão precisar de ajuda. Mais do que isso, os próprios pacientes estão pedindo roda de conversa, quando tudo voltar a abrir”, conta.
Historicamente vulneráveis
Iniciativas locais surgem como apoio social neste período, em que fica mais exposto o pouco investimento em saúde mental, desde que equipes de saúde sofreram atrasos de salário e demissões, em 2019. “A gente não vê uma mudança do poder público para reestruturar esses serviços. O contexto da saúde mental em termos de atendimento e de serviço já era precarizado antes da pandemia e incapaz de dar conta”, atesta Luna Arouca, assistente social e coordenadora do Espaço Normal, referência sobre drogas na Maré. Nesse cenário difícil, a Telemedicina SAS Brasil fortaleceu seus atendimentos online e gratuitos aos moradores de periferias do Rio de Janeiro e São Paulo. Já são mais de 4 mil consultas.
“Quando falamos em saúde mental na favela, o diagnóstico e tratamento são importantes, mas não somente eles. É promovendo cidadania que se produz enfrentamento”, prega Thiago Melício, professor e psicólogo, atuante na assistência em periferias. “As políticas públicas são capazes de ofertar uma melhor estrutura de enfrentamento, para que as pessoas possam acessar as políticas de assistência, de justiça e de educação. São elas que vão formar essa rede de cidadania”. Carlos César concorda. “A gente consegue provocar uma mobilização, para melhorar a vida das pessoas em torno da busca da realização dos sonhos e de sentidos para a vida”.
Só foi possível pensar em alternativas depois da reforma psiquiátrica, em que os pacientes tiveram leis e políticas de regulamentação para tratamento humanizado. Antes, as pessoas eram limitadas às suas condições. Com a luta antimanicomial, os pacientes são o foco.
O que não diminui o valor que devemos dar ao cuidado. O projeto Mentes da Maré, por exemplo, inspira a criação de iniciativas parecidas no Complexo do Alemão e na Rocinha. Entre os desafios, Neves cita o preconceito. “Pobre tem problema mental sim, não é doença de rico. O trabalho exige mais da gente, a vida exige mais da gente. E a ideia é que eles fiquem confortáveis em saber que, perto deles, alguém que se importa”.
A prática da valorização da vida vem de profissionais da saúde, moradores e instituições locais, diariamente, ainda que com pouco investimento. Vem das iniciativas e atividades online, da distribuição de itens de higiene, cestas básicas e outras práticas de cuidado com cada mareense. Com as ruas cheias, a luta continua vindo desse mar de gente.
Iniciativas gratuitas de apoio a saúde mental na Maré:
Telemedicina SAS Brasil – Atendimento psicológico online
WhatsApp: 21 99272-0554
Espaço Normal – Espaço de Redução de Danos
Telefone: 21 3105-4767
Instituto Yoga na Maré – Aulas de yoga online
Instagram: @yoganamare
Mentes da Maré – Atendimento psicológico online
WhatsApp: 21 98635-7575
Na foto o psiquiatra Carlos César (ao centro) e dois pacientes, em frente ao CAPS Magal, de Manguinhos, que também atende moradores da Maré. Foto de Gabriel Loiola