Neste outono de 2024, as águas incorporaram-se, sem apelação, às ruas e praças do Centro Histórico e de inúmeros bairros da cidade de Porto Alegre. Fomos invadidos pelo rio, que os sicários da construção civil teimam em chamar de lago, como forma de abrandarem os efeitos da legislação ambiental e abrirem as portas das cobiçadas áreas ribeirinhas às construtoras e aos grandes empreendedores.
Por Miguel da Costa Franco, compartilhado de seu Blog
Não fomos as únicas vítimas da catástrofe, infelizmente. O mal está espalhado pelo Rio Grande. Outras comunidades dos arredores da Lagoa dos Patos e dos vales dos rios das Antas, Taquari, Caí, Sinos, Gravataí, Jacuí e seus afluentes também estão afogadas por essa inundação terrível, sem precedentes à altura, mas previsível e anunciada.
Anos de devastação ambiental, de desrespeito ao adequado zoneamento agrícola e urbano e de supressão da paisagem original, que garantia a absorção dos excessos hídricos, transformaram nossas ruas, pátios, praças, parques e varandas no único conduto disponível para escoar as chuvas pesadas que caíram sobre a região. O Guaíba invadiu o cais e as ruas, lojas, bares, livrarias, estádios, museus e centros culturais, casas e apartamentos. Até o Mercado Público, a Rodoviária, o Trensurb, o Aeroporto e a Prefeitura. Solapou existências, perspectivas e memórias.
A população está assustada e mal amparada por dirigentes hipócritas e diversionistas, que deixaram de lado a prestação de bons serviços e se dedicaram a sucatear os órgãos de Estado. Preferiram, sempre, garantir os ganhos imediatos de seus financiadores de campanha e aparecer bem postados nas fotos da imprensa amiga, no papel dos dirigentes modernos e inovadores que nunca foram. Eis o que conseguiram, esses fantoches de araque, Eduardo Leite e Sebastião Melo, representantes de plantão desse empreendedorismo amador e egoísta que chamamos de poder econômico: centenas de mortos e feridos; o desaparecimento de cidades inteiras, ou sua destruição parcial; danos monumentais à infraestrutura viária; prejuízos diretos na esfera pública e privada; desvalorização de imóveis e bairros; desemprego e desabastecimento; paralisação de escolas; perda de atratividade para investimentos. É provável ainda que soframos com a migração futura de empresas para ambientes empresariais mais seguros e promissores. Um atraso de muitos anos está desenhado para diante. Que grandes gestores eles são!
O quadro geral é de desesperança, não há como negar. Conta-se com a força cidadã nessa hora difícil. Clama-se pela ajuda estatal, porque na hora do aperto só os entes do Estado – Prefeituras, Defesa Civil, Exército, Marinha, Aeronáutica, Força Nacional, órgãos vinculados ao SUS, Corpo de Bombeiros, Brigada Militar, Conab, Secretarias, Ministérios e outros desse naipe – podem ajudar. Os neoliberais estão ocupados em urdir novos projetos de lei concentradores de riqueza, em reduzir o número de servidores para abrirem espaço para os cargos de confiança, ou tomando seu uísque num convescote, olhando para um futuro plastificado e glorioso em algum Summit ou curtindo uma happy hour com recepcionistas gostosas pré-pagas. “Desculpe, cidadão, eles não podem atendê-lo no momento”.
Fala-se muito em resiliência e reconstrução, num ambiente em que um admirável esforço solidário convive com o cansaço, o desespero de muitos e o temor geral pelo futuro que se avizinha. Os dias passam lentos e cinzentos. A situação não muda. Pior: nada nos garante, diante dessa imprudência administrativa, que não ocorrerá outra hecatombe, amanhã ou depois.
Ainda assim, em alguns cantos, entre o ufanismo bobo e a desesperança, subsiste a beleza e a poesia. Posso afiançar.
As águas podres, que invadiram em turbilhão as duas pistas da Avenida Borges de Medeiros, pela inoperância das bombas do sistema de drenagem, agora descansam pacíficas, como se também elas estivessem exaustas, sobre o piso de concreto e asfalto impermeável da avenida; como antes o faziam, sem essa companhia invasora, as águas verdolengas depositadas em piscina sob a antiga ponte dos Açorianos, próxima dali.
Neste dia 27 de maio, águas paradas – quase translúcidas – formam um bucólico remanso na Praça Isabel, a Católica, na confluência da Borges de Medeiros com a Avenida Aureliano de Figueiredo Pinto. Mais além do traçado urbano, no outro lado do dique, o rio corre ainda lamacento e assustador. A praça Isabel, a Católica, no triângulo formado entre essas duas vias e a Praia de Belas, transformou-se em ilha parcialmente inundada, coberta de galhos mortos, troncos caídos e lixo trazido pela enxurrada. A feiúra das margens entulhadas contrasta com o nome de batismo da avenida, estampado na placa azul no lado oposto da ilhota, junto à esquina. Esse nome antigo, Praia de Belas, agora é quase um acinte.
Na Estação do Corpo de Bombeiros da Aureliano, um soldado de plantão – deixado para trás nas operações de resgate e salvamento – observa o nível das águas, conjecturando, imagino, sobre a melhor maneira de prestar auxílio em caso de necessidade: se arriscando sair de caminhão ou pilotando um de seus botes metálicos.
Mas onde está a poesia, afinal, me perguntarão os impacientes.
Olhando de onde estou postado, a natureza parece retomar seus espaços e sua bem orquestrada desordem original. O parque infantil, no centro da praça, com seus balanços e gangorras, resta como um assombro de felicidade em meio à ilha atulhada de restos. Displicente, uma capivara solitária alimenta-se da grama, onde antes a gurizada jogava futebol. Centenas de garças distribuem-se pela beira da praia improvisada, ou talvez definitivamente remarcada – já não sabemos – no lado da Borges. Apoiadas numa pata só, as garças brancas desobedecem às placas de “proibido estacionar” e observam, com olhos atentos, a vida sob as águas. Pescam. Buscam sua comida, mais livres e autônomas sobre o antigo leito da avenida do que os humanos refugiados nos abrigos ou que resistem, aprisionados, nos apartamentos mais altos. Por vezes, sobrevoam as águas paradas e capturam lambaris e carás com bicadas precisas, ou dobram vertiginosamente o pescoço e surpreendem os peixes imprudentes que se permitem nadar no seu entorno. São muitas. Às vezes, brigam pelo apetitoso butim. Engolem inteiros os que capturaram com movimentos decididos, girando-os nos bicos pontudos e deixando-os escorregar para dentro de si pelos longos, movediços e alvos pescoços. Não temem sufocar. Nunca vi pedirem pelas tais manobras de Heimlich, que costumam salvar os humanos engasgados, como nós porto-alegrenses nos sentimos hoje. Estão acostumadas a isso, é seu hábito vital. Usufruem com gosto da fartura de peixes que escaparam das águas da torrente, além do dique, e refugiaram-se nos remansos das ruas, entre os prédios da administração pública. Ao fundo do quadro bucólico, o bombeiro começa a distribuir grãos de arroz para marrecas piadeiras.
É um espetáculo bonito. Poético, como eu disse. A natureza e seus agentes retomando espaços. Um mar de garças brancas sobrepondo-se ao concreto e à ambição desmedida. Devolvendo à paisagem algo de sua composição primitiva.
Será essa a reconstrução necessária? É de se pensar que sim. De onde estou, vejo carros possantes rastejando assustados pela pista empoçada, frente a deslocadas placas de controle de velocidade, refletidas na piscina malcheirosa. São bólidos perdidos, inadequados, dissociados de sentido. Perderam sua hora. “Dá até pena de passar e atrapalhar a comilança das garças”, comenta uma motorista impetuosa, que se mete lagoa adentro com seu camionetão. Até ela reconhece esse vívido deslocamento. Sim, dá pena. O espetáculo das garças, dos cardumes e da capivara extraviada – estará também por aí o jacaré da Getúlio? – é um presente para os olhos.
A vida, nesses dias aterradores, anseia por algo de poesia.
Do alto do prédio do IPERGS, no mural que foi instalado para homenageá-lo e de onde ele parece anunciar um irado “eu avisei”, o ambientalista José Lutzenberger, escondido entre folhagens coloridas, observa a cena. A mão ossuda serve de apoio para um passarinho – um cardeal, talvez –, que sabe não ter motivos para temê-lo. Aquela Borges de Medeiros repaginada, devolvida às garças, aos peixes e às capivaras, certamente agradaria mais aos dois – o naturalista e o pássaro – do que a pista impermeabilizada que substituiu o alagadiço original. Quão desolado estaria agora o velho Lutz, aquele sábio e insistente visionário, que tanto alertou – e tanto lutou – para que não chegássemos à difícil situação em que nos metemos?
É tempo de perguntas diretas e respostas bem pensadas. Quero que nossos filhos e netos possam acreditar no futuro. Repetiremos os erros do passado? Insistiremos no adensamento urbano e na impermeabilização dos solos? No aterro das várzeas e na devastação da cobertura vegetal? Seguiremos chafurdando no engodo neoliberal da desregulamentação, do autolicenciamento, da terceirização de serviços essenciais, do desprezo pelas necessidades do povo e do culto ao Estado mínimo? Ou saberemos construir uma cidade mais integrada e perene, com estrutura para enfrentar nossas tantas fraquezas, que respeite a força do rio e dos seus afluentes, que siga ao lado da ciência e da honestidade intelectual de ecologistas como o Lutz?
As cartas estão na mesa. Ou the book is on the table, para os moderninhos ignorantes, facciosos e imprevidentes reunidos em happy hour, no inglês que eles são capazes de entender.
– Miguel da Costa Franco –