Mãe Beata, a(s) luta(s) continua(m)

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, publicado em Projeto Colabora – 

Povo de santo discute como sustentar o legado da ialorixá feminista que combatia a intolerância, o racismo e a homofobia

Foto: Leo Aversa

A brasileira Beatriz Moreira Costa teve a educação fundamental brutalmente interrompida na 3ª série, por ordem do pai. “Filha dele não aprendia a ler, pra não fazer bilhete pra chamar homem pra detrás da casa”, recordava ela. A decisão acabou impotente para tirá-la do caminho, e a baiana do Recôncavo, de Cachoeira do Paraguaçu, aprendeu a ler com “papel velho, catado no lixo”. Tudo para pavimentar o destino de líder, que cumpriu como Mãe Beata de Iemanjá, a mais importante ialorixá do Rio.

Escritora, militante dos direitos humanos e do meio ambiente, ela morreu no dia 27 de maio aos 86 anos, e, para além da imensa importância religiosa, deixou inestimável herança de luta e sabedoria. Mas, justamente no momento em que a intolerância cresce a níveis assustadores, sobra uma interrogação: como substituir Mãe Beata na defesa das religiões afro-ameríndias, no acolhimento à comunidade LGBT, no enfrentamento ao racismo, na causa ambiental?




O candomblé é acolhedor. Temos outras pessoas, muitas, na mesma luta contra a intolerância, a homofobia. Cada um faz a sua parte, o legado vai ser dividido por várias pessoas. Beata se destacou, mas a luta nunca foi só dela. É nossa – e vai continuar

Mãe Meninazinha D’Oxum
Ialorixá

Diferentemente da maior parte das religiões, as denominações de matriz africana não funcionam a partir de uma hierarquia vertical, de padres, bispos, cardeais, rabinos, profetas, monges. Cada pai ou mãe de santo comanda sua casa (ou terreiro), numa estrutura independente, com caminhos construídos de maneira autônoma, mas que terminam formando uma teia, pelos preceitos comuns.

“As batalhas são e serão coletivas”, prega Mãe Meninazinha d’Oxum, 80 anos, carioca filha de baianos, provavelmente a mais influente ialorixá (mãe de santo) do Rio a partir de agora. “Beata foi uma guerreira, corajosa, que defendeu as mulheres negras e levou o nome da religião ao mundo”, reverencia ela, líder do Ilê Omolu Oxum, em São João de Meriti. E aponta para o futuro de sobrevivência. “O candomblé é acolhedor. Temos outras pessoas, muitas, na mesma luta contra a intolerância, a homofobia. Cada um faz a sua parte, o legado vai ser dividido por várias pessoas. Beata se destacou, mas a luta nunca foi só dela. É nossa – e vai continuar”, garante Meninazinha, “na religião desde antes de nascer”, exaltando o caminho da amiga com quem partilhou a fé por mais de 40 anos.

Homenagem  póstuma a Mãe Beata, na Alerj: mais de 300 fiéis do candomblé, numa manhã inesquecível. Foto: Divulgação/Alerj

Mãe Beata pavimentou sua jornada a partir das dificuldades decorrentes da infância pobre, pontilhada de rigores. Ao se consagrar no candomblé, buscou acolher e lutar, até subindo em palanques para defender as agendas fundamentais. Ainda nos anos 1980, quando um filho de santo surgiu com o HIV, encontrou-a engajada na luta contra a Aids. E sua casa, o terreiro Ilê Omiojuarô (A Casa das Águas dos Olhos do Caçador), em Miguel Couto, distrito de Nova Iguaçu, transformou-se em destino de outros portadores do vírus.

Não vão surgir outras Beatas tão cedo. O exemplo que ela deu de ética e princípios são muito fortes

Zeca Ligiero
Professor

“Ela tinha uma visão libertária do ser humano”, sublinha Zeca Ligiero, 67 anos, professor, encenador e chefe do Núcleo de Estudos das Performances Afro-ameríndias da UniRio. “Viveu como pensava, na luta contra o preconceito racial, a desigualdade de gênero, na defesa dos homossexuais”, lista ele, mogbá (ministro de Xangô, o orixá da justiça e do fogo) do terreiro há 27 anos, que acompanhou Mãe Beata ao exterior, para palestras em lugares como Nova York e Berlim.

As causas estão presentes nos três livros escritos pela autodefinida “semianalfabeta” – assim mesmo, sem rodeios –, dotada de impressionante oratória. “O candomblé é meu empoderamento, é minha posse, é minha vida, é a fonte que eu bebo, é minha água em qualquer momento, é o som que eu ouço, é o canto dos pássaros, é o lamento das nossas crianças, do morro, da periferia, dos homossexuais. É minha estrada, é a encruzilhada em que eu nasci, é o rio do Recôncavo, em Cachoeira do Paraguaçu, onde eu nasci. É a fome que eu passei em criança, a boneca que não tive o direito de ter. O candomblé me deu oportunidade, minha cultura, minha vida. O candomblé, para mim, é minha cultura, o sangue do meu povo”, discursou, em arrebatadora entrevista a Lázaro Ramos, no programa Espelho, do Canal Brasil.

Iniciada por Mãe Olga do Alaketu, em Salvador, Beata migrou para o Rio em 1969, no movimento dos nordestinos na busca por prosperidade, carregando os quatro filhos biológicos. Trabalhou como empregada doméstica, figurante da TV Globo, manicure, cabeleireira, artesã, pintora e costureira, profissão pela qual se aposentou.

Sua mãe de santo viajou da Bahia até a Baixada Fluminense para, em 20 de abril de 1985, inaugurar o terreiro, endereço de luta incessante e axé infinito. “Ela partia em direção ao resultado que resolveria a injustiça”, resume Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, que teve Mãe Beata como presidenta de honra. Em 2008, ao saber que dois soldados do Exército estavam sendo vítimas de homofobia, não teve dúvidas. “Por favor, você me consegue o telefone do ministro da Justiça”, pediu a Lúcia, ekedi (cuidadora dos orixás) da casa em Miguel Couto. “Ela se consolidou ainda como importante líder feminista e antirracista, construindo processos políticos, para garantir a defesa dos direitos das pessoas”, acrescenta.

Mãe Beata pôs o candomblé também a serviço da agenda ambiental. Os orixás se relacionam com forças da natureza – Iemanjá é senhora dos mares; Oxum, dos rios e cachoeiras; Iansã, dos ventos e tempestades; Oxóssi, das matas – e, para viver, necessitam da preservação, defendia ela. Tanto que a ialorixá desenvolveu intenso trabalho comunitário, cuidando do seu bairro – na montanha de carências chamada Baixada Fluminense – e cobrando das autoridades a mesma postura.

Por tudo isso, não será simples carregar o legado, avalia Zeca Ligiero, que fala em perda irreparável. “Não vão surgir outras Beatas tão cedo. O exemplo que ela deu de ética e princípios são muito fortes. A situação do Brasil não está, a meu ver, relacionada apenas com preconceito e intolerância”, analisa. “Há mais complexidade, com a corrupção em todas as camadas. A luta de uma pessoa é importante, mas precisa ser de várias pessoas”.

A própria casa de Miguel Couto seguirá como trincheira. Mãe Beata delegou a cada filho – Ivete, Doya, Adailton e Aderbal – um poder do candomblé e todos herdaram o engajamento. Adailton adquiriu o lado doce, clemente, generoso, até se consagrar o babalorixá do terreiro, sucessor de sua mãe biológica (e matriarca espiritual de mais de 150 filhos de santo). Aderbal herdou a oratória, exibida em discurso incendiário ao fim da cerimônia de entrega póstuma da medalha Tiradentes a Mãe Beata, dia 7 de junho, na Alerj. Iniciativa do deputado Marcelo Freixo (PSOL), a cerimônia reuniu mais de 300 fiéis do candomblé, pintando de branco a casa legislativa sitiada por grades – consequência dos incontáveis pecados dos homens de terno que habitam o lugar –, numa manhã inesquecível.

O filho mais novo, aliás, assina como produtor o documentário biográfico “Encruzilhada das águas – a vida de Mãe Beata de Iemanjá”, que percorre a história da ialorixá desde a infância de extrema pobreza no antigo Engenho do Iguape. “Sou uma mulher negra, ialorixá de uma religião trazida pelo Brasil por construtores dessa nação, que foram os negros africanos”, proclama ela, sob aplausos viscerais numa cerimônia de premiação. “Minha história me dói por dentro, mas é a causa de minha luta”, traduz, em depoimento emocionado.

“O carisma de Mãe Beata foi algo muito precioso, que fez dela uma concentradora das lutas”, aponta o babalaô (sacerdote do culto de Ifá, outra religião de matriz africana) Ivanir dos Santos, historiador e integrante da Coordenadoria de Religiões Tradicionais Africanas, Racismo Intolerância Religiosa da UFRJ. “Teremos de apostar em outro formato, mais coletivo, para manter viva nossa luta”.

Lúcia Xavier mantém-se otimista em relação ao futuro das causas. “Agora, o ser Beata de Iemanjá serão várias pessoas. Ela dizia sempre que não existia uma só liderança. Sentia-se parte de nós”, descreve. “E nos preparou para o legado de luta coletiva, por uma sociedade ética”.

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