Por André Giusti, publicado em Projeto Colabora –
Ex-moradora de rua, Nica abriga, em Ceilândia, soropositivos sem casa e rejeitados pelas famílias
“Até os 23 anos eu sabia apenas que meu nome era Francisca e que fui deixada em um orfanato com seis meses de idade por um homem”. É a primeira coisa que Francisca Tenório de Souza Sena conta sobre sua vida. Esse homem, que seria seu pai, disse que voltaria depois para pegar a criança. Claro que isso nunca aconteceu, e ela viveu nesse orfanato – em Itumbiara, Goiás, a 400 quilômetros de Brasília e 200 quilômetros de Goiânia – até os nove anos de idade.
Nica, como é chamada, foi adotada por uma família de Uberlândia, em Minas. Adotada é força de expressão. Ela foi levada para ser empregada doméstica. “Acordava 5h30 para fazer café. Quando eles acordavam, tinha que estar tudo pronto”, conta hoje, aos 51 anos. “Não exigiram nada, nenhum documento, não passei por juizado nenhum”, acrescenta, relembrando a facilidade com que foi tirada do orfanato, uma realidade totalmente diferente da de hoje em dia quando se fala em adoção de crianças. “A única coisa que o orfanato pediu – pediu, não exigiu – é que eu continuasse estudando”.
Quando era interna, Nica frequentava a escola, mas, em Minas, a única coisa que fez foi trabalhar e trabalhar, em troca apenas de casa e comida. “Eu dormia no sofá da sala”, conta. E corria para se deitar na porta do quarto daquela que deveria ser sua mãe adotiva, mas que na verdade era sua patroa, ou senhora, em uma analogia ao trabalho escravo. É que ficava com medo dos surtos de um dos filhos do casal, um rapaz com deficiência mental. Mas essa nem era a pior ameaça. “Fui abusada por outro dos filhos, várias vezes” – ela lembra com os olhos duros de tristeza, mas sem chorar, porque talvez nem tenha mais lágrimas para lembrar desse tempo. Até porque a situação se repetiu ao longo dos anos que viriam.
Ficou nessa casa apenas quatro meses. A família não a quis mais e nem se deu ao trabalho de devolvê-la ao orfanato. Abandonou-a lá mesmo, pelas ruas de Uberlândia, quando ela era uma menina de apenas nove anos. “Eu não consigo descrever a vida nas ruas, e, se eu conseguisse, você não iria entender. Só quem vive ou viveu entende” – ela assegura, mantendo o olhar duro pelo passado.
A menina teve que descobrir o instinto de sobrevivência. Batia de porta em porta, se oferecendo para lavar e passar em troca de comida e de uma cama para dormir à noite, longe do relento. Nessa barganha sofreu humilhações e novos abusos dos homens das casas em que pediu abrigo.
Em Uberlândia, quando estava nas ruas, juntava-se a um bando de outras quatro ou cinco meninas que também vagavam pela cidade. “Elas até tinham família, mas era aquele histórico de pai alcoólatra, mãe espancada, família desestruturada. E aí preferiam a rua”, conta. “Só eu é que não tinha ninguém. As meninas riam de mim: Nica, se você morrer, quem vai te enterrar? Você não tem ninguém. Aí eu ficava mesmo com medo de morrer e virar um zumbi, porque ninguém ia me enterrar”. E ela chega a rir, divertida, hoje em dia, da lembrança tão dura.
Grávida aos 14 anos
Aos 12 anos, foi parar em Brasília. “Uma das meninas disse que tinha uma tia aqui, e que aqui dava para arrumar emprego”. De carona em carona, chegaram à capital do país. “Imagina só! Cinco meninas de 12, 13 anos entrando e saindo de carona na estrada”. Ela reconhece a sorte de nada de mau ter acontecido.
O grupo passou noites dormindo no meio do mato onde hoje é o Sudoeste, bairro de classe média, em Brasília. As companheiras de rua resolveram voltar para Uberlândia. Nica ficou em Brasília, onde, aos 14 anos, engravidou de um outro morador de rua, bem mais velho e alcoólatra, que morreu pouco depois em um acidente.
Até os 23 anos continuou provando o inferno das ruas, que começou com o filho sendo levado dela com apenas 15 dias por uma das mulheres que lhe deram abrigo. Quando fala dessa época, ela não se detém em fatos, mas em um sentimento que perdura e resume o que passou. “Penso nas vezes em fui humilhada, espancada, nas vezes em que acordei com gente me chutando, jogando pedra em mim. E, por ser mulher, ser abusada na rua… quantas vezes eu ouvi: pode fazer porque não tem quem defenda ela”. E outra vez seu olhar endurece. “Eu ouvi durante muito tempo que eu não prestava, que eu não valia nada e que eu não ia ser nada. E durante muito tempo eu acreditei nisso”.
Não bebia e usou drogas poucas vezes: o que a ajudou a se sustentar no meio de tanta adversidade foi – por incrível que pareça – a leitura. “Eu catava coisas para ler nas latas de lixo, livros, a antiga revista Manchete, até bula de remédio eu lia”. E, para espanto de quem ouve, cita Dante Alighieri, Dostoievski e Franz Kafka. “A leitura mostrava um mundo diferente do que eu vivia, sabe? A leitura para mim era uma fuga, me dava força para acreditar que eu poderia mudar a minha vida”, conta, exultante. “Tanto é que quando pude voltar a estudar, fiz o supletivo sem maiores problemas, porque a leitura me deu base”, destaca. Quando ela conta essa parte, é possível notar como ela fala corretamente, empregando pronomes certos e sem erros de concordância ou regência.
Por acreditar que poderia mesmo mudar de vida, Nica fez o juramento que é a razão para contar sua história. “Eu dizia que se um dia eu saísse das ruas eu ia cuidar de gente, eu ia fazer pelos outros o que não fizeram por mim”.
Com uma ajuda aqui, outra ali e muita força de vontade, começou a mudar sua vida, para, logo em seguida, melhorar um pouco a dos outros. Uma das pessoas que lhe estenderam as mãos sugeriu que ela voltasse ao orfanato em busca de alguma informação de seu passado. Ficou sabendo da forma como foi deixada no orfanato e que lá havia um registro seu, com nome completo e local de nascimento. “Descobri meu sobrenome, o nome dos meus pais e que nasci em Pernambuco. Isso aos 23 anos”. Quando era criança, ninguém no orfanato havia contado nada disso a ela, muito menos mostrado o registro.
Com o documento, voltou a estudar, fez curso de cabeleireira, arranjou emprego em salão de beleza. Permaneceu na rua ainda por seis meses juntando dinheiro para alugar um barraco. Quando alugou, conseguiu tirar o filho, já com 7 anos, de um abrigo, para morar com ela. O menino passara por três tentativas de adoção que não haviam dado certo. Foi difícil aceitar a mãe no início. “Ele achava que tinha sido abandonado por mim”, conta Nica.
Com residência fixa, havia chegado a hora de cumprir a promessa feita quando não tinha casa. “Mal aluguei o barraco, pus para dentro duas crianças de rua”. Adotou essas duas meninas e, ao longo dos anos, outras cinco crianças, chegando a 10 filhos, sendo três biológicos. “Eu nunca fui filha de ninguém, e hoje sou mãe de um monte”, sorri.
Em 1997, conheceu o marido em uma igreja evangélica. Os dois saíam pelas noites de Brasília distribuindo comida e roupas doadas a moradores de rua. Esse trabalho deu origem ao Instituto Exército de Cristo, INEC, uma entidade assistencial que fica em Ceilândia, uma das maiores e mais carentes cidades do Distrito Federal, a cerca de meia hora de Brasília. É no INEC que Nica abriga moradores de rua soropositivos. O compromisso que havia firmado quando era moradora de rua passou a ter endereço, CNPJ e todo o tipo de formalidade para existir legalmente. Em 2003, a Fundação Bill e Melinda Gates premiou o programa brasileiro de combate à AIDS e exigiu que o dinheiro da premiação fosse distribuído entre entidades que cuidassem de quem tinha o vírus. A instituição que Nica comanda conseguiu ser contemplada: com os R$ 60 mil do prêmio, ela e o marido compraram a casa em Ceilândia, sede definitiva do abrigo.
Duplo preconceito
Mas por que só soropositivos? Nica conta que quando ela, o marido e um grupo de colegas se juntaram para alugar uma casa e instalar o abrigo, os primeiros internos tinham o vírus da AIDS. Ela entendeu isso como um recado de que deveria se dedicar a essas pessoas que sofrem dois preconceitos: o de morarem na rua e o de serem portadores, o segundo, ainda pior que o primeiro. “Eu me vejo no lugar deles e entendo a rejeição”, explica com a experiência de quem foi rejeitada muitas vezes. Para ela, a rejeição é filha do preconceito – e cita a história de um interno de 53 anos, com uma depressão tão profunda que sequer consegue andar. “Tudo porque a mãe não quer mais saber dele desde que soube que ele contraiu o vírus”.
“Você pode ser alcoólatra e viciado em crack, que os abrigos te aceitam. Se for soropositivo, não”, conta André Luiz Gomes de Souza, 40 anos, que descobriu há dez anos ser portador do vírus HIV. Filho único de pais que já morreram e sem qualquer parente, ele viveu na rua em vários lugares do Brasil, e por causa de sua saúde foi rejeitado em diversas casas de recuperação onde procurou ajuda para se livrar das drogas. “Estou limpo há dois anos”, assegura.
Se o preconceito impede o acolhimento, que dirá conseguir um emprego. “Já ouvi de empresário que mulher grávida e soropositivo são a mesma coisa, porque vivem indo a médico”, conta André. “E eu já ouvi de empresário que um soropositivo sai caro pra ele, porque a pessoa tem que ir a médico toda hora, que pega doença com facilidade, que fica dias sem trabalhar”, completa Nica. André vive de um magro benefício social do governo, mas não titubeia em garantir que o preconceito que sofre é muito pior que não ter trabalho. “A pior coisa é você saber que uma outra pessoa não te quer do lado dela”, resume. Ele é o único no abrigo que se deixa fotografar.
O preconceito quase tirou o Instituto Exército de Cristo do endereço onde funciona. Em 2009, o vizinho que mora na casa em frente conseguiu assinaturas de todos os moradores da rua para que o abrigo fosse fechado. Só a vizinha ao lado do INEC não assinou. “Vocês estão desvalorizando as casas daqui. Se eu for vender minha casa, ela não vai valer nada porque tem esse bando de gente doente. Isso está colocando em risco a vida dos meus filhos” – Nica reproduz o que, à época, ouviu do sujeito. “Ele achava que estava ajudando a gente: se eu tirar vocês daqui, o governo dá um buraco pra vocês no meio do mato”, disse o vizinho, segundo ela. “A vizinha que não assinou chegou a apanhar”, conta. Como o caso chegou à imprensa e a alguns políticos locais, o abrigo conseguiu se segurar, mas, de acordo com Nica, os internos ainda são insultados pelo mesmo vizinho quando, por exemplo, estão na calçada fumando – dentro da casa, é proibido fumar.
Essa é uma das regras do lugar. A principal, talvez até mais condicionante do que propriamente uma regra, é que para entrar no abrigo a pessoa tem que estar se tratando do vírus. “Ela não está aqui para morrer. Ela está aqui para se tratar e viver”, frisa a diretora. Lá, segundo Nica, 80% são alcoólatras ou usam drogas – ou têm os dois vícios – e o esforço que a pessoa faz para se livrar da dependência é levado em conta para permanecer no abrigo, onde, claro, não se pode beber nem usar tóxicos. Os internos podem ocasionalmente dormir fora. “Tem gente aqui que namora, mas tem que avisar que não virá à noite”, explica, acrescentando que o horário de entrada é até 23h. Há revezamento na limpeza e na cozinha, e cada um arruma sua cama quando acorda.
Atualmente o Exército de Cristo abriga 11 pessoas; cada uma com um gasto mensal de R$ 3 mil, com todas as despesas. Para fechar a conta no fim do mês, o local vive de doações e da ajuda de parceiros fixos, todos pessoas físicas. A única coisa que o Governo do Distrito Federal faz é encaminhar pacientes para a casa. “Não dá um centavo”, garante Nica. A casa está com o IPTU atrasado há três anos e no dia em que entrevistamos Nica, não havia mais toalha de banho. André Luiz, por exemplo, estava se enxugando com uma camiseta. Melhor do que morar na rua? Nica balança a cabeça, sorrindo de leve, e, calada, é como se dissesse “Lógico que é”.
Quem quiser e puder ajudar o INEC deve ligar para 61 98352-1784