Mahatma Gandhi: uma vida pela não-violência

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Por Elizabeth Harkot de La Taille, publicado na Revista PUB – 

No dia 02 de outubro, a Índia comemora o aniversário de Mahatma Gandhi (Bapu, pai da pátria indiana), Gandhi Jayanti, um de seus três feriados nacionais. Este ano, foi comemorado o 150º aniversário de seu nascimento. Desde 2007, a Assembleia Geral da ONU passou a adotar a data como celebração do Dia Internacional da Não-Violência.

Nascido em 1869, Gandhi cresceu em Rajkot, uma das instâncias tradicionais a que o Império Britânico concedeu autonomia em assuntos internos, um dos estados nativos, (native states), de que seu pai era conselheiro, ou primeiro ministro, da autoridade local.




Estudou e se formou em direito pela University College London, em Londres, Inglaterra. Voltou à Índia em 1891 e, depois de um ano mal sucedido de prática do direito, foi convidado a representar o hindu Dada Abdulla em KwaZulu-Natal em um processo judicial, na África do Sul, onde permaneceu por 20 anos.

Acreditando que o dever do advogado consistia em ajudar o tribunal a descobrir a verdade, viveu a discriminação que a cor de sua pele suscitava nesse país em pleno Apartheid. Biógrafos atribuem a suas experiências de violência sofrida e restrição de liberdade desse período a formação e o desenvolvimento de seu profundo sentimento de luta pela justiça político-social.

Gandhi fiando, 1946.

Foi na África do Sul que Gandhi difundiu o princípio da não-violência como resistência e desobediência civil. Nesse país, quando o Império Britânico aprovou uma lei invalidando os casamentos não cristãos – transformando num átimo quase todas as mães e esposas em concubinas, o mesmo que meretrizes, na mesma lei -, convocou os homens indianos a se apresentar às autoridades em ato de recusa. Cada homem que assim se apresentasse era punido com castigo físico. Formou-se uma enorme fila. Um a um, ao longo de muitas e muitas horas, um após o outro eram punidos fisicamente. Saiam do castigo e voltavam ao final da fila. Incansavelmente, por uma semana. Os algozes foram se incomodando com a fadiga, os responsáveis por mandar punir esses homens foram se deixando afetar e se constrangindo, ao perceber que havia algo ali além da obediência ou não à lei. A lei acabou revogada.

Em 1915, Gandhi voltou definitivamente à Índia. Por trinta e três anos, até ser assassinado em janeiro de 1948, liderou movimentos libertários não-violentos, por exemplo, pela recusa do pagamento de novos impostos, pela renúncia à compra de produtos cuja produção ou venda era monopólio britânico, pela convocação aos indianos, por seu próprio exemplo, a tecer os próprios tecidos, como resposta à exploração trabalhista e econômica exercida pelas tecelagens.

Destacam-se, dentre os movimentos liderados pelo Mahatma (do sânscrito, “grande alma”, “venerável”), a Marcha do Sal, que devolveu aos indianos o direito de produzir seu próprio sal para uso, e o “Saiam da Índia” (Quit India), que culminou na Independência do país, embora, contrariamente à sua intenção, com seu território dividido em Índia, Paquistão e Bangladesh.

Marcha do Sal, 1930.

Influenciado por ideias diversas como a desobediência civil de Thoreau, o reino de deus interior de Tolstoi, a conduta de vida austera em comunidade de Ruskin, a Religião Ética (Ethical Religion), de William Salter, além de estudos do Sermão da Montanha cristão, do hinduísmo – principalmente as escolas monistas do Vedanta – e do budismo, Gandhi se definiu hindu advaitista. Difundiu os princípios da não violência e da busca da verdade, enquanto defendeu o respeito e o princípio de não causar dor a qualquer forma de vida (não apenas humana), os direitos das mulheres, os direitos civis face ao Império Britânico e as relações inter-religiosas.

Os focos de sua ação política foram tanto reativos quanto propositivos. Por exemplo, lutou contra:

a. o racismo na África do Sul;

b. o sistema de castas;

c. a exploração econômica;

d. e a discriminação e desigualdade sexuais.

Paralelamente, defendeu, com base em seus próprios atos e exemplos:

a. a independência da Índia;

b. os intocáveis;

c. uma ordem econômica justa;

d. uma forma não violenta de lutar;

e. a igualdade e emancipação das mulheres;

f. a harmonia no convívio inter-religioso.

Einstein escreveu sobre Gandhi em anotação pessoal (original), traduzida do inglês e grifada por mim:

“A conquista de Mahatma Gandhi é única na história política. Ele criou um meio completamente novo e humano para a guerra de libertação de um país oprimido e o praticou com toda energia e devoção. A influência moral que ele exerceu sobre o ser humano conscientemente pensante de todo o mundo civilizado provavelmente será muito mais duradoura do que nos parece em nosso tempo, com a supervalorização de forças violentas brutais. Porque só será duradouro o trabalho desses estadistas que acordam e fortalecem o poder moral de seu povo através de seus exemplos e trabalhos educacionais. Todos nós podemos ser felizes e agradecidos ao destino por nos presentear com um contemporâneo tão iluminado, um modelo para as gerações vindouras. As gerações futuras dificilmente acreditarão que alguém como este homem andou em carne e osso sobre a Terra.”

Otimismo de Einstein, talvez, mas o mundo conhecia o antagonismo entre o “poder pela diplomaciaversus o “poder pela violência”, diante do qual a revolta ou a rebeldia sempre se deram com recurso, não apenas, mas também, à violência, gerando uma queda de braço com as instâncias mandantes. “Olho por olho e o mundo acabará cego”, dizia Gandhi, e assim estabeleceu um novo paradigma para a ação humana, ao adotar e difundir o princípio da não-violência; mostrou ser possível organizarem-se revoltas que recusam seu uso, pela desobediência civil na forma de não cooperação pacífica. Pacifismo e não-violência, nas ações desse homem franzino, nada tiveram de fraqueza, apesar de muitos as confundirem. É preciso muita força, não força bruta, mas força de caráter, para enfrentar as violências do poder de modo não violento, pacífico. É preciso se dispor a morrer – não a matar – pela causa defendida. Essa força de caráter, repetidamente demonstrada, esvazia o sentido não apenas das violências cometidas pelos poderosos, mas também daquilo que violentamente defendem.

Pode não ser demais sublinhar, principalmente para quem puder supor que ação pacífica e recusa de violência se igualam a fraqueza: foi exatamente a desobediência civil não violenta que derrotou o Império Britânico, aquele onde o Sol não se punha, comparado ao antigo Império Romano, os maiores da história da humanidade, e que conquistou a independência da Índia. O território acabou por se partir em três, como mencionado, Índia, Paquistão e Bangladesh, para profunda consternação de Gandhi. Isso, porém, fica para outra história.

Para finalizar, cito sete itens destrutivos à humanidade, por Lia Diskin, segundo Gandhi:

1. Riqueza sem trabalho

2. Prazer sem responsabilidade

3. Crescimento sem valores

4. Negócios sem ética

5. Ciência sem compromisso humanitário

6. Religião sem altruísmo

7. Política sem princípios

A esses riscos impõe-se, hoje, acrescentar as consequências de alguns deles, causadas pelo (mau) manejo do planeta.

* Para quem quiser saber mais, leia a autobiografia de Mahatma Gandhi, em que ele relata sua vida apontando erros e acertos, Story of My Experiments with Truth. Há várias traduções para o português com títulos aproximados.

** Agradeço e dedico este texto ao evento “150 years of celebrating the Mahatma”, realizado na FFLCH em 30/09/2019.

ELIZABETH HARKOT DE LA TAILLE, Doutora em Semiótica e Lingüística Geral pela USP, é Professora Associada Livre Docente da Universidade de São Paulo nas áreas da Língua Inglesa e Linguística.

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