Mais um dia na vida de uma médica que combate o Covid-19: “Estou chorando a ferida aberta na sociedade, chorando uma dor coletiva”

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Pela médica Antonieta Ozzetti (Tui) * – 

 

As pessoas se incomodam com o choro de um profissional da saúde, mas não se incomodam com um “E DAÍ?” para cinco mil mortos*.

Está tudo errado. Há quem prefira postar foto e vídeo da vida que não tem, para mostrar o que não é e o que não sente. E há quem só queira ver isso também, pois viver na superfície é mais confortável. Vivem tangenciando sentimentos e negligenciando a si mesmos.




As redes sociais hoje mostram pessoas perfeitas e felizes. Desculpe, eu não sou essa pessoa. Nem perfeita nem feliz 100% do tempo. Sim, eu sofro e choro pelas mortes que eu vejo, e pelas mais de 10 mil de brasileiros que partiram e por outros tantos que estão partindo.

Agora faço uma pergunta, se você tivesse perdido um parente, preferia ver alguém dizendo “e daí?” Ou alguém que mal o conhece chorando por ele? Que tentou salvá-lo e compartilha da sua dor?

Se você tivesse um parente doente na UTI, preferia que fosse cuidado por super técnicos apenas ou por uma equipe humana?

Será que não dá para ser os dois? Porque acham que uma coisa exclui a outra? Ou alguém acha que tiramos o coração do peito e damos em troca do diploma de médico ou enfermeiro?

Só para os que realmente se preocupam comigo, e sabem que eu nunca expus minha vida pessoal na rede social, eu estou chorando a ferida aberta na sociedade. Estou chorando uma dor coletiva, essa dor não é minha particular, eu não perdi (graças a Deus) nenhum parente ou amigo próximo. Mas não preciso esperar que isso aconteça para lamentar essa doença. A dor do mundo reverbera em mim.

Chorar suas próprias dores é muito natural. Mas chorar pelo outro…  Ah, isso é difícil. É a tão falada “empatia”,  tão pouco praticada.

E desculpem se eu incomodei algumas pessoas com as minhas lágrimas, ou preocupei outras. Quem me conhece sabe, sempre fui emotiva e chorona. Canceriana com lua em peixes, um turbilhão de emoções.

Eu estou bem. Cuidando da minha cachola, não se preocupem comigo. Há muita gente que precisa mais de preocupação do que eu.

Na linha de frente há dias bons, outros péssimos, mas eu fui abençoada por uma família que me ampara e me fortalece diariamente. E também tenho recebido muitas orações de pessoas que eu nem sequer conheço, e agradeço, isso também me ajuda.

Só digo mais uma coisa: é bem legal meditação e a introspecção, tenho esses momentos também. Se não, já estaria pirada de verdade. Mas o que realmente salva vidas são atitudes concretas. Meditação não salva vidas. E não espere leveza dos que estão no front. Essa guerra é bem mais pesada do que vocês imaginam.

*Do Bem Blogado: Bolsonaro respondeu com um “e daí?”, sobre os cinco mil brasileiros mortos pelo Covid-19 em 28 de abril.  Hoje, 10 de maio, ele continua passeando seu desprezo, descaso, escárnio, com mais de 10 mil mortos.

*Antonieta Ozzetti é médica do Hospital das Clínicas e Beneficiência Portuguesa

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