Embora, teoricamente, pretos e pardos tenham estes direitos garantidos, na prática, muitos pardos enfrentam desafios na identificação, pois seus fenótipos ambíguos e mestiços nem sempre são percebidos como próximos ao que nossa população compreende como conceito de negritude
Por Beatriz Bueno, compartilhado de Fórum
na foto: Alison dos Santos Rodrigues, que teve autodeclaração de pardo negada para matrícula em curso de medicina.Créditos: Arquivo Pessoal
As redes sociais foram novamente tomadas pela notícia de que a USP cancelou a matrícula de um cotista de medicina, negando sua autodeclaração como pardo. Este caso, envolvendo o jovem Alison dos Santos Rodrigues, que é nitidamente uma pessoa parda para grande maioria dos observadores que estão comentando as notícias, é semelhante a uma série de polêmicas relacionadas à negação injusta em bancas de heteroidentificação, muitas delas vinculadas aos cursos de medicina.
Não é difícil perceber que, de maneira recorrente, tais situações questionáveis têm ocorrido nessas avaliações. Em 2022, Williane Muniz também enfrentou a rejeição em uma banca para o mesmo curso. No início deste ano, João Victor Uchôa teve sua autodeclaração como pardo contestada em uma banca para medicina, enquanto foi aceito como pardo no curso de biologia. Isso aponta que as pessoas pardas que sonham cursar medicina devem se preparar não apenas para o vestibular mais desafiador do país, infestado de uma predominância branca, mas também o desafio adicional de serem coagidos a comprovar que são ‘negros o bastante’ para usufruir do direito constitucional que não é destinado apenas aos pretos, mas à todo grupo pardo que hoje, segundo censo do IBGE de 2022, representa 45,3% da população brasileira.
As estatísticas socioeconômicas brasileiras demonstram que os efeitos do passado escravocrata impactam de maneira significativa os grupos de pessoas pretas e pardas. Diante dessa realidade, o Estado reconhece a necessidade de implementar políticas de reparação histórica, uma responsabilidade essencial. No entanto, o Estatuto da Igualdade Racial estabelece que tais políticas só podem ser efetivadas ao considerar que pretos e pardos são a população negra do Brasil.
Embora, teoricamente, pretos e pardos tenham estes direitos garantidos, na prática, muitos pardos enfrentam desafios na identificação, pois seus fenótipos ambíguos e mestiços nem sempre são percebidos como próximos ao que nossa população compreende como conceito de negritude. Ou seja, essas pessoas são incluídas nas estatísticas de vulnerabilidade sob a soma “pretos + pardos = negros”, sofrem os impactos do racismo em suas vidas diariamente, mas não desfrutam plenamente dos direitos conquistados principalmente pelo fato de representarem uma parcela expressiva da população brasileira. Além disso, observa-se um apagamento dos pardos que têm ascendentes indígenas – estes também têm o direito de usufruir de políticas de reparação, mas como foi estabelecido que ‘pardo é negro’, acabam excluídos.
Nos debates raciais atuais em relação a esse tema, é comum encontrar defensores da ideia de que a comprovação de identidade nas cotas raciais não deve mais permitir o uso de fotos de familiares, prática que era comum no passado. Essa perspectiva se baseia no argumento de que o racismo no Brasil é intrinsecamente associado à ‘marca’, ou seja, à aparência física das pessoas e não sua ancestralidade, uma afirmação válida e comprovada sociologicamente. No entanto, o renomado pesquisador Oracy Nogueira, responsável por essa conclusão em suas pesquisas, também destacou outra perspectiva muito importante: em uma sociedade que o racismo é de marca, a concepção de branco e não branco varia significativamente entre regiões, classes sociais e até mesmo nas relações interpessoais, ou seja, laços familiares e de amizade. (NOGUEIRA, 1955)
Lamentavelmente, essa observação importante, que destaca a interpretação diferente da aparência física dos pardos conforme influências socioculturais, muitas vezes é negligenciada tanto em debates quanto pelas bancas de heteroidentificação. Isso resulta na injusta exclusão de pessoas pardas com características ambíguas, ou daqueles sem um fenótipo negro tão evidente, de seus direitos. Essa omissão desconsidera a complexidade da identidade racial brasileira e perpetua a exclusão desses indivíduos.
Em 2007, gêmeos idênticos enfrentaram divergências nas avaliações de cotas, sendo um irmão considerado negro e o outro branco. Esse incidente foi estrategicamente explorado pela oposição, resultando em tensões políticas e tentativas de derrubar as leis de cotas. Na época saiu uma matéria na Veja com título “RAÇA NÃO EXISTE”, que destacou o caso dos meninos. Este episódio representa um sério perigo para nossos direitos, alertando sobre os riscos que corremos ao não considerar adequadamente a diversidade dos pardos mestiços, em vez de simplificar como negros. Quanto mais risco estamos dispostos a correr?
É essencial considerar que pardos e pretos podem ser agrupados como grupos vulneráveis racialmente, sem a necessidade de impor a terminologia “negros”, negros são os pretos. Isso abriria espaço para uma compreensão mais precisa da identidade das pessoas pardas, evitando também problemas de representatividade, como observado nos casos de Flavio Dino no STF e Edilene Lobo no TSE, que foram alvo de críticas severas ao serem considerados negros nessas posições, pois são pardos, não negros.
É muito importante também a alteração do inciso IV da Instrução Normativa nº 23/2023 do Ministério da Gestão e Inovação (MGI), que aborda a composição das bancas de heteroidentificação. A norma sugere que as bancas preferencialmente sejam formadas por membros experientes na promoção da igualdade racial e combate ao racismo. Contudo, não estabelece isso como uma obrigação, permitindo que indivíduos inexperientes no assunto julguem a vida desses indivíduos pardos, sem aprofundar sua compreensão na complexa questão étnico-racial brasileira. Essas lacunas na regulamentação destacam a necessidade urgente de garantir a expertise necessária nas bancas para evitar julgamentos equivocados e prejudiciais.
Referência:
NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. [S. l.: s. n.], 1955.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum