Compartilhado de DW –
Na vacinação, país poderia ser um exemplo mundial, mas o governo Bolsonaro não tem vontade, competência ou a visão para organizar uma campanha. Em vez disso, abraça o cinismo e arrisca vidas, escreve Philipp Lichterbeck.
Eu tive covid-19. De forma moderada, com febre, dores de cabeça e um pouco de fadiga. Após dez dias, me senti bem novamente. Apenas a perda do olfato permaneceu, e provavelmente ficará comigo por algum tempo. Admito que fico um pouco assustado quando leio relatos sobre possíveis sequelas a longo prazo, como dores nas articulações e problemas respiratórios – mesmo que eu não tenha sentido nada disso.
Onde fui infectado, eu não sei. Pode ter sido no supermercado, no jantar de Natal com amigos, no aeroporto, em um táxi ou na fila do caixa eletrônico. A única coisa que está claro é que o vírus está circulando.
Quando descobri que tinha covid-19, fiquei nervoso, porque você não sabe como a doença vai se desenvolver. O que antes era abstrato de repente se tornou concreto. Milhões de brasileiros já passaram por isso e se sentiram assim.
Por isso estou aliviado que a campanha de vacinação tenha finalmente começado, mesmo que tenha sido apenas semanas após o início da vacinação na Europa, nos EUA e na vizinha Argentina. O início da vacinação, porém, não é graças ao governo Jair Bolsonaro, mas a alguns poucos governadores responsáveis.
Se o estado de São Paulo não tivesse procurado a vacina chinesa Coronavac, o Brasil provavelmente ficaria hoje com apenas dois milhões de doses da vacina de Oxford e um avião de carga vazio, que seria enviado para buscar doses de vacina da Índia – sem que ao menos se tivesse combinado com os indianos.
Muitas vezes esquecida no momento é a vacinação Sputnik V da Rússia. Ela em breve poderá ser aprovada pela Anvisa. A Sputnik V também não foi adquirida pelo governo Bolsonaro, mas pelos estados do Paraná e da Bahia.
A indiferença do presidente à covid-19 é óbvia. Ele não leva a sério a pandemia e os mais de 210 mil brasileiros mortos. Pior, ele reage como se a pandemia existisse apenas para incomodá-lo pessoalmente e para obstruir seu governo.
Durante muito tempo Bolsonaro negou o vírus e o perigo que ele representa. Agora ele está sabotando a campanha de vacinação. Jair Bolsonaro é sempre “contra”, não consegue evitar. Seu combustível é provocação e distúrbio. Ele parece com o menininho que, por ciúmes, destrói os castelos de areia das outras crianças no parquinho. Com a diferença de que a destrutividade de Bolsonaro custa vidas humanas.
Tudo isso é especialmente trágico também porque o Brasil estaria bem posicionado para realizar uma campanha de vacinação rápida e abrangente. O país poderia ser um modelo para o resto do mundo. Assim como o Bolsa Família, a luta contra a fome e os programas de alfabetização do Brasil serviram de modelo para outros países, o Brasil também poderia se distinguir internacionalmente através de uma ampla campanha de vacinação.
Mas este governo não tem vontade, competência ou a visão de futuro para organizar tal campanha. A única coisa que Bolsonaro consegue fazer bem: nomear militares para cada problema e cada posto vago. Competência? Não importa.
O SUS oferece boas condições para uma campanha de vacinação rápida e abrangente. A infraestrutura e a experiência estão lá. Qualquer pessoa que tenha tido que ir ao SUS para tratar um ferimento ou doença menor ou para obter uma vacina pode atestar isso, inclusive eu. Você tem que esperar, mas chega a sua vez e você vai ser atendido. Desde que não seja para cirurgias complicadas e doenças graves, o SUS está na verdade em uma boa posição, considerando que ele é público e gratuito.
Mas o SUS tem uma reputação péssima. É subfinanciado, e os recursos muitas vezes não são utilizados de forma eficiente. Uma das razões para isso: a Emenda Constitucional do teto de gastos (EC 95), criada pelo governo Michel Temer e endossada por Jair Bolsonaro. Segundo o médico e professor da PUC de Campinas Pedro Tourinho, o SUS já perdeu 22 bilhões de reais por causa disso.
E assim, mais uma vez, o Brasil está jogando fora um de seus pontos fortes. O maior dilema do Brasil é, sem dúvida, o de não fazer nada com suas enormes oportunidades. Poderia ser um dos países mais ricos e bonitos do mundo. Em vez disso, é dilacerado por conflitos internos, injustiça, violência e pobreza.
A vontade de destruir é provavelmente o traço mais característico do governo Bolsonaro. A crise do coronavírus confirma isso novamente. Está destruindo o meio ambiente do Brasil, o maior tesouro desta nação. Ela prejudica instituições reconhecidas como o Ibama, o Instituto Palmares ou o Ministério das Relações Exteriores, que está sob o controle do teórico da conspiração Ernesto Araújo. Ele também destrói a vida de milhares de brasileiros com suas políticas negacionistas na pandemia. Ao fazer isso, está prolongando a crise.
Bolsonaro está destruindo o último pedaço de reputação que o Brasil já teve internacionalmente. É nos momentos de crise, costuma-se dizer, que o verdadeiro caráter de uma pessoa é revelado. O presidente e seus apoiadores revelam, acima de tudo, uma coisa: cinismo.
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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais na Alemanha, Suíça e Austria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.