Por Zé Sérgio, jornalista –
Foi há muito tempo, nos anos 70, quando começaram a surgir cineclubes em todo o Rio de Janeiro. Eu tinha o meu, junto com dois colegas do curso de cinema da UFF, Albertino da Paz e Chico Moreira, e o Sergio Oliveira (Macau), que fazia jornalismo. Albertino chegou a ser um bom operador de som, mas trocou o cinema pelo Banco do Brasil. Chico foi pesquisador e montador dos documentários “Os Anos JK” e “Jango”, ambos dirigidos por Sílvio Tendler.
Nosso cineclube tinha o nome de Ademar Gonzaga – o homem da Cinédia, um dos pioneiros do cinema brasileiro – e ficava no bairro da Abolição, onde eu havia passado a infância. Fizemos acordo com uma escola e lá exibíamos, no tempo do Médici e do Geisel, o que o Cinema Novo e o Neorrealismo produziram de melhor – Gláuber, Nelson, Rui Guerra, Rossellini, De Sica, Antonioni, Monicelli.
Finda a exibição, começava o debate, porque este era o objetivo inconfesso da maioria dos cineclubes – usar o cinema para provocar, fazer as pessoas pensarem primeiro no filme, depois na própria vida e na política. Não por acaso, muitos cineclubistas eram ligados a partidos clandestinos. Tarefa da organização. Hoje, isso pode soar infantil, mas a gente levava a sério. Nós e o pessoal do Cineclube Glauber Rocha, em Santa Teresa; do Cineclube Grande Otelo, no alto do Salgueiro; do Macunaíma, na ABI; do Cineclube do Leme, semente dos cinemas do grupo Estação.
Hora do flashback. Afinal, falamos em cinema. Para entender a história que vou contar, é preciso voltar mais ainda no tempo, até 1964. Eu era um guri de 12 anos e fiquei sabendo do golpe porque meu avô de criação, seu Correia, mulato, ex-capoeira regenerado, chofer de táxi e brizolista roxo, passou a noite de 31 de março acordado, e eu do lado dele, ouvindo notícias terríveis pela Rádio Mayrink Veiga e torcendo para que as forças leais ao Governo João Goulart derrotassem o inimigo. Só que não havia forças leais. Era tudo traíra!
Na manhã seguinte, jogando bola na ladeira onde morávamos, vi os tanques passando a poucos metros lá de casa, dezenas deles, lá embaixo na Avenida Suburbana. No portão, dona Adelina, minha avó de criação, semi-analfabeta e desbocada, fez o comentário que definiu os 20 anos seguintes: – Puta que pariu, vai começar a pouca vergonha!
Na minha idade, o golpe não tinha a menor importância. Em maio de 1964 adoeci. Peguei hepatite e fiquei o resto do semestre em casa lendo Monteiro Lobato e o Tesouro da Juventude e comendo tudo quanto é tipo de doce. Era este o tratamento. Foi então que ganhei um presentaço da minha mãe, um gravador de rolo cuja marca e modelo nunca esqueci, Transicorder TR 300. Espetáculo! Quando cansei de mexer no brinquedo sozinho, chamei a molecada inteira da rua para brincar no portão lá de casa e foi aí que alguém teve a idéia da gente fazer uma novela no gravador. Na TV estava passando “O Direito de Nascer”. Nós faríamos uma imitação, como se fosse para o rádio. E cada amigo tinha um papel.
Sabe o garoto que é dono da bola e escolhe o ataque ou a ponta direita? Pois é. Meu personagem, evidentemente, só podia ser o principal. O do galã. O mais velho da turma, um tal de Condorcet, ficou sendo a mocinha. Por ser o mais parrudo, ninguém duvidava da masculinidade dele, apesar de certo exagero nos falsetes. Evidente que a novela era uma farra. Misturava situações do próprio enredo lacrimejante que estava sendo transmitido pela tv, política – o pouco que sabíamos – e escatologia até não mais poder. Levando em conta o nosso altíssimo nível intelectual, alguns diálogos eram na base do “Querida, vou comer você!”. “Ó meu amor, põe tudo, mas vê se enfia direito essa porra!”. Coisas do Condorcet, que tinha idade e cara de pau para comprar as revistinhas do Carlos Zéfiro e emprestava para o resto da turma.
Mas a gente também misturava política porque a política era muito presente naquele tempo. Nossa ladeirinha era conhecida por ter um dos melhores carnavais do subúrbio, com palanque organizado por um eterno candidato do PTB, seu Zappone. Por causa disso, surgiam diálogos mais elaborados, tais como “Querida, vou comer você e vou botar na bunda do Lacerda!”, “Ó meu amor, me faz um filho e arromba aquele filho da puta da UDN!”.
Eu tinha que dar pausa na gravação (só eu podia mexer no aparelho, pombas!) porque todo mundo caía na gargalhada. Os coroas da rua não acreditavam quando viam a turminha da Cantilda Maciel, que vivia saindo na porrada com a turminha da Macedo Braga, ali quietinha, todo mundo concentrado, sentado na escada, conversando. Poucos entendiam o que estava se passando ali. Desconfio que ninguém mais no bairro tinha gravador. Eram dois os principais papéis femininos. O da namorada do galã e o da empregada negra da família cubana ou mexicana, sei lá. Era a Mamãe Dolores. Personagem que foi entregue ao único garoto negro retinto do grupo, o Joel PQD. Joel, que tinha então uns 14 anos, sonhava com o pára-quedismo, daí o apelido.
Joel morava no Morro do Urubu, para onde volta e meia a turma inteira se mandava e passava tardes inteiras soltando pipa. A avó dele não deixava faltar o refresquinho e o pão com goiabada na hora do lanche. Só que o Joel era um desastre como ator. Ninguém ria de suas falas, ele esquecia os falsetes, era um desastre. Outra coisa: ele só admitia ser chamado de Mamãe Dolores durante as “gravações”. Fora delas, ameaçava sair na porrada. Mas acabou se conformando com o apelido cruel. Tempos depois, se um de nós o chamasse de Mamãe Dolores, depois reduzido para Mamãe, tudo bem. Mas ai de quem, não sendo da turma, se atrevesse a falar assim…
De volta aos anos 70. Numa noite de domingo fiquei até mais tarde no cineclube. Os outros “sócios” saíram antes por algum motivo. O lugar ficou deserto. Dez e meia, sozinho na Avenida Suburbana, esperando o ônibus para o Castelo (e no Centro pegaria outra condução até Copacabana, onde morava), só não tive grande medo porque aquela era a minha área e os índices de violência eram baixíssimos. Medo, naquele tempo, era mais ou menos como hoje em dia: a gente tinha medo, sim, mas da polícia. No caso, da polícia política, mesmo sendo apenas tarefeiro de alguma organização.
Foi então que do nada surgiu um sujeito armado, um negro. Veio direto na minha direção: – Passa a grana senão vai morrer! Devo ter ficado trêmulo como qualquer pessoa normal, mas a sensação ruim passou logo. – Mam… Mamãe Dolores? É você? – Caralho! Zé Sergio! Mais de dez anos depois da novela. Um abraço forte de velhos camaradas, amigos de infância. E muita tristeza do Joel, que nunca entrou para o corpo de pára-quedistas. Nem do Exército fez parte porque era arrimo de família. Com a morte da avó, e depois do padrasto, que morreu atropelado por um caminhão, ali mesmo na Suburbana, perto do ponto de ônibus, ficou com Joel a incumbência de ajudar a mãe e os irmãos mais novos. E ele nunca deu conta daquele papel direito. Vivia sendo despedido dos empregos de merda que arranjava. Chorou. Aliás, choramos.
Quando as lágrimas secaram, lembramos os bons tempos. E foi então que fiquei sabendo que o Condorcet havia terminado Medicina. Que o Arnaldo tinha se casado com a Ângela, a menina mais bonitinha da rua. Que o Bebeto morava no Méier com a irmã e o cunhado. E que o Minguinho era funcionário da Abolição Veículos, ali na esquina da Rua Silva Xavier, a rua do Colégio Guarani, que cedia suas instalações para o Cineclube Ademar Gonzaga. Alguém havia morrido de meningite na epidemia que a ditadura proibiu de divulgar. Eu sabia, porque naquele tempo já trabalhava no JB.
Até que caímos na realidade. Eram quase onze da noite e a polícia – agora a preocupação era com a civil ou a militar – poderia aparecer de repente. Juro que pensei na integridade daquele amigo de infância, um camarada que levou uma banana do destino. Comecei a torcer pela chegada rápida do Castelo-Padre Nóbrega. Só então me dei conta do perigo: – Porra, Mamãe! Guarda essa arma!
Joel também havia esquecido de seu (hoje) ridículo revólver calibre 32, que continuava apontado na minha direção. – Desculpa, Zé. Nem percebi. A emoção tinha passado. Agora eu estava puto com a ditadura (sim, a culpa do Joe ter virado assaltante era da ditadura, de quem mais?) e cansado. Cansado e impaciente. Eu queria ver a Abolição pelas costas – Mamãe, não é melhor você se mandar?
Até o fim da vida não vou esquecer a resposta daquele pobre sujeito, já na casa dos 30 anos: – Não, Zé Sergio. Vou ficar até chegar teu ônibus. Tá tarde … tem dado muito assalto aqui…