‘Mais votos, menos vidas’

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Por PH de Noronha, compartilhado de Projeto Colabora – 

Estudos mostram que covid-19 vem matando mais nas regiões onde o presidente Jair Bolsonaro teve uma votação maior

Grafite no Rio de Janeiro mostra o presidente Bolsonaro usando máscara contra a covid-19 sobre o olhos. Foto Bárbara Dias/AGIF

Há um forte consenso entre especialistas de saúde e lideranças da sociedade civil de que a política do presidente Jair Bolsonaro para o enfrentamento da epidemia de covid-19 contribuiu fortemente para a morte de mais de 420 mil brasileiros. É uma política que combina negacionismo, estímulo ao uso de remédios ineficazes e perigosos, propagação de fake news, procrastinação na adoção de medidas necessárias (uso de máscaras, compra de vacinas, lockdown) e incompetência generalizada na gestão do Ministério da Saúde.




Acusado de genocídio, o governo Bolsonaro é alvo de investigação do Tribunal de Contas da União (TCU) e de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado, além de sofrer inúmeras acusações na opinião pública brasileira e mundial, inclusive denúncias no Tribunal Penal Internacional. Mesmo assim, o presidente continua a ignorar as regras básicas de segurança sanitária, promovendo aglomerações de sem uso de máscaras quase todos os fins de semana em Brasília e nas cidades satélite do Distrito Federal.

Neste cenário de filme non sense de ficção política, começam a surgir estudos que mostram que, nas regiões onde a população mais votou em Bolsonaro, é justamente onde a epidemia de covid-19 tem causado mais mortes.

O físico Osvaldo Carvalho, doutor em Ciência da Computação pela Université Pierre et Marie Curie, da França, é professor voluntário do Departamento de Ciência da Computação da UFMG e especialista em desenvolvimento de sistemas para análise de taxas de atendimento do SUS. Em 11 de abril ele publicou em sua conta no Facebook um estudo informal comparando o voto em Bolsonaro em 2018 com as taxas de mortalidade (número de mortos em relação ao total da população) por covid-19.

Ele dividiu as cidades em duas categorias: os “municípios17” (voto em Bolsonaro) e os “municípios13” (voto em Fernando Haddad). O principal resultado: “Em 21 estados a taxa de mortalidade nos municípios17 foi maior que nos municípios13; em quase todos, muito maior (…) Considerando todos os municípios do Brasil, a taxa17 é 54% maior que a taxa13, e a diferença entre o número de mortes pelas duas taxas chega a 90.000”. Vale a leitura da entrevista com Osvaldo Carvalho comentando esses números, publicada no site Brasil de Fato.

Outro trabalho informal – “descritivo”, na definição de seus autores – que vai nessa mesma linha foi realizado por quatro pesquisadores do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), entidade independente e sem fins lucrativos. Compara dados não apenas de mortalidade, como também de isolamento social, com os votos em Bolsonaro na eleição de 2018.

“Os resultados indicam a existência de uma relação positiva entre apoio eleitoral ao presidente e a aceleração da mortalidade por covid-19 em 2021 no Brasil. A mortalidade tem acelerado exatamente nos estados e municípios que mais votaram em Bolsonaro em 2018 e onde o distanciamento social tem sido menor – portanto, em lugares mais alinhados e suscetíveis à retórica do presidente. Neste sentido, apoio político e eleitoral a Bolsonaro têm correlação direta com mortalidade: mais votos, menos vidas”, explica o estudo, cujas conclusões foram publicadas em artigo na “Folha de S. Paulo”, intitulado “Quantas vidas cabem em um voto?”, assinado pelos pesquisadores Beatriz Rache¸ Miguel Lago, Fernando Falbel e Rudi Rocha.

João Saboia: "Os municípios com maior votação em Bolsonaro no primeiro turno são também os que contabilizam, proporcionalmente, maior número de casos e de óbitos". Foto Arquivo Pessoal
João Saboia: “Os municípios com maior votação em Bolsonaro no primeiro turno são também os que contabilizam, proporcionalmente, maior número de casos e de óbitos”. Foto Arquivo Pessoal

Um terceiro trabalho sobre o tema foi publicado no final do ano passado. Trata-se do estudo acadêmico “The municipios facing COVID-19 in Brazil: socioeconomic vulnerabilities, transmisssion mechanisms and public policies (“Os municípios diante da covid-19 no Brasil: vulnerabilidades socioeconômicas, mecanismos de transmissão e políticas públicas”). É fruto do esforço conjunto de três pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), João Saboia, Marta Castilho e Valéria Pero, com dois colegas franceses, François Roubaud e Mireille Razafindrakoto, do Instituto de Pesquisas para o Desenvolvimento (IRD pela sigla em francês).

O foco da pesquisa foi a análise dos fatores socioeconômicos na transmissão da covid-19 no Brasil, identificando elementos de risco de contágio e morte, de acordo com as diferentes categorias sociais. Em sua conclusão, diz (em tradução livre do original inglês): “O estudo mostra que a covid-19 causa mais danos nos municípios mais favoráveis ao Presidente Bolsonaro. O discurso e as atitudes ambíguas do presidente podem induzir seus apoiadores a adotar mais comportamentos de risco (menos respeito às orientações para o confinamento e o uso de máscara) e a sofrerem as consequências disso”.

João Saboia, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ, conta que a pesquisa realizada pelo grupo utilizou um modelo econométrico, com informações ao nível de municípios, que incorporou cerca de 20 indicadores, cobrindo diversas características que poderiam influenciar os resultados da doença: demográficas, habitacionais, econômicas, de mercado de trabalho, de mobilidade e políticas.

“Procuramos analisar os dados com todas as variáveis que pudessem distorcer resultados. Por exemplo, seria plausível esperar uma situação da covid-19 mais desfavorável nos municípios com nível mais baixo de escolaridade e com mais idosos, ou com a maior parcela da população vivendo em domicílios em condições habitacionais precárias. Porém, mesmo após ponderarmos todas essas variáveis, confirmamos nossa suspeita: os municípios com maior votação em Bolsonaro no primeiro turno são também os que contabilizam, proporcionalmente, maior número de casos e de óbitos”, diz Saboia.

A partir desses dados, ele e seus colegas cunharam o conceito “Efeito Bolsonaro”.

“O resultado que alcançamos parece relativamente sólido em termos estatísticos, no sentido de revelar que, possivelmente, parcela considerável da população que confia no presidente pode ter se comportado seguindo seu exemplo. É isso que denominamos ‘Efeito Bolsonaro’, ou seja, as pessoas acatam a orientação do presidente – não respeitam o isolamento social, não usam máscaras, minimizam a doença. Com esse comportamento, essas populações são atingidas com maior intensidade pela covid-19, além de disseminar com mais força a doença para os demais moradores de seu município”, explica Saboia.

Em termos numéricos, a pesquisa concluiu que, para cada 10 pontos percentuais a mais de votos para Bolsonaro, há um acréscimo de 11% no número de casos e de 12% no número de mortos por covid-19.

No Município do Rio

As tendências apontadas por esses três estudos são confirmadas por um exercício de jornalismo de dados sobre a votação do segundo turno da última eleição presidencial nos bairros do Município do Rio de Janeiro, combinada com os totais de casos confirmados e óbitos por covid-19. Os resultados são similares aos estudos apresentados acima: as regiões cariocas com maior letalidade (total de mortos sobre o total de infectados) estão entre as que mais deram votos para eleger Bolsonaro em 2018.

Os dados analisados nesse exercício são todos públicos. Estão disponíveis na Internet nos sites do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (divisão dos bairros por zonas eleitorais); do G1 (resultados das eleições de 2018); e do Painel Rio COVID-19, da Prefeitura do Rio (casos e óbitos de covid-19).

Três das regiões analisadas – duas delas na Zona Oeste e uma compreendendo uma ampla extensão da Zona Norte – detêm as maiores taxas de letalidade de covid-19 no município do Rio. Coincidentemente, nessas regiões Bolsonaro teve algumas de suas maiores votações no segundo turno em 2018.

As regiões analisadas, cada uma com vários bairros, não existem na nomenclatura oficial. Foram criadas de forma a permitir uma comparação entre votos e letalidade de covid-19. Isso foi necessário porque a Justiça Eleitoral trabalha com totais de votos por Zona Eleitoral (ZE), e não por bairros. Cada Zona Eleitoral compreende vários bairros.  Além disso, algumas delas não contêm a votação inteira de alguns bairros, que têm seus eleitores distribuídos por diferentes ZEs.

Já os dados de covid-19 da Secretaria Municipal de Saúde podem ser segregados por bairros, a partir do CEP informado pelos pacientes na entrada da unidade em que foi atendido.

Como não seria possível comparar bairros individuais com zonas eleitorais que compreendem vários bairros (no todo ou em parte), foram criadas novas regiões genéricas que compreendem apenas bairros inteiros (com a única exceção de Realengo, bairro que, pela divisão eleitoral, tem parte de seus eleitores na Zona Oeste, e parte na Zona Norte).

Assim, foi possível comparar a soma de votos de um conjunto de bairros com o total dos dados de covid-19 dos mesmos bairros. A essas áreas foi dado o nome genérico de Regiões Eleitorais (REs). Assim, as 49 ZEs e seus bairros originais de 2018 foram redistribuídos em 11 REs (veja tabela).

No estudo desses dados, a RE com maior índice de letalidade do município do Rio compreende 15 bairros da Zona Oeste: Augusto Vasconcelos, Bangu, Campo Grande, Catiri, Cosmos, Inhoaíba, Jardim Bangu, Paciência, Padre Miguel, Realengo (parte), Santa Cruz, Santíssimo, Senador Camará, Senador Vasconcelos e Vila Kennedy.

Nesse conjunto de bairros, havia 977,6 mil eleitores registrados no pleito de 2018. Desse total, 490,9 mil (50,2% do total) deram seu voto para Bolsonaro (PSL). Apenas 179,2 mil (18,3%) votaram em Fernando Haddad (PT) e 307,5 mil (31,5%) não votaram, ou votaram branco/nulo.

Paralelamente, esses 15 bairros somados apresentaram, até 22 de abril, 27.880 casos de covid-19 e 3.843 óbitos. Isso resulta numa taxa de letalidade de 13,8%. Em outras palavras, em cada 100 moradores infectados com covid-19, 14 vão a óbito.

Esse número é bem mais alto do que a taxa geral de letalidade do município do Rio, que é de 9,4% – bem maior do que a taxa de todas as capitais estaduais. Além disso, a letalidade da RE da Zona Oeste está muito acima das taxas do Brasil (2,7%) e do mundo (2,1%).

Outra região com alta taxa de letalidade por covid-19, 12,1%, também fica na Zona Oeste da cidade, mas num enclave junto à costa. Compreende os bairros de Barra de Guaratiba, Guaratiba, Ilha de Guaratiba, Nova Sepetiba, Pedra de Guaratiba e Sepetiba. São 3.281 casos confirmados e 464 óbitos por covid-19.

Nesses cinco bairros, havia 146,6 mil eleitores em 2018 e quase metade, 72,6 mil (49,5%), votou em Bolsonaro no segundo turno. Haddad teve apenas 28,9 mil votos (19,7%) e a soma de abstenções, brancos e nulos deu 45,1 mil votos (30,8%).

A terceira RE com alta letalidade e muitos votos em Bolsonaro reúne a maior parte da Zona Norte da cidade, compreendendo 20 Zonas Eleitorais. São ao todo 64 bairros, que incluem Bonsucesso, Cascadura, Del Castilho, Deodoro, Encantado, Inhaúma, Irajá, Jacaré, Lins de Vasconcelos, Madureira, Marechal Hermes, Méier, Olaria, Pavuna, Penha, Piedade, Praça Seca, Ramos, Realengo (parte), Rocha Miranda, Tomás Coelho, Vicente de Carvalho, Vila da Penha, Vila Valqueire e Vista Alegre. São quase 2 milhões de eleitores, que deram 867,9 mil votos (44,4%) a Bolsonaro, contra 437 mil (22,3%) a Haddad, além de 651,6 mil (33,3%) abstenções, brancos e nulos.

A letalidade nessa região é de 10,1% – um em cada dez infectados morre –, com um total de 56.052 casos e 5.676 óbitos.

Barra da Tijuca

A Região Eleitoral que deu mais votos a Bolsonaro em 2018 foi a que compreende a Barra da Tijuca e seu entorno, o que inclui os bairros de Alto da Boavista, Camorim, Freguesia (Jacarepaguá), Itanhangá, Recreio dos Bandeirantes, Vargem Grande e Vargem Pequena.

Pouco mais da metade dos seus 257,1 mil eleitores votou em Bolsonaro: o presidente recebeu 134,4 mil votos (50,2%), contra apenas 48,5 mil para Haddad (18,9%). Abstenções e votos brancos e nulos somaram 74,2 mil (28,9%).

Porém, a taxa de letalidade da Barra está entre as menores do município, 6,2% (19.385 casos, 1.203 óbitos), destoando das outras regiões com grande votação em Bolsonaro e que apresentam números altos de óbitos, em relação aos casos confirmados.

Apesar da letalidade menor, a partir do segundo semestre de 2020, a Barra da Tijuca liderou por vários meses o ranking dos bairros com maior incidência de casos no município. No Painel Rio COVID-19 do último dia 11 de maio, a Barra perdeu essa liderança para Campo Grande, por uma diferença muito pequena: tinha 10.489 casos confirmados, contra 10.987 de Campo Grande. O Recreio dos Bandeirantes era o 10º no ranking, com 5.877 casos.

A baixa letalidade talvez possa ser explicada pelo maior poder aquisitivo médio dos moradores da Barra, do Recreio, do Itanhangá, da Freguesia e do Alto da Boa Vista, combinado com a grande oferta de serviços de saúde na região, tanto privados quanto públicos. Para um morador da Barra ou Recreio, por exemplo, é bem mais fácil o acesso a um serviço de saúde de qualidade do que para quem mora em Bangu ou Santa Cruz. Além disso, o percentual de moradores com planos de saúde privados na RE da Barra é certamente bem superior ao das comunidades da Zona Oeste e da Zona Norte.

Jacarepaguá e Ilha

Duas REs com taxas igualmente altas de letalidade também deram boa votação para Bolsonaro em 2018.

A Região de Jacarepaguá – que inclui os bairros de Anil, Curicica, Gardênia Azul, Pechincha, Tanque, Taquara e as comunidades faveladas de Cidade de Deus e Rio das Pedras (que têm status de bairros) – conta com 302.352 eleitores. Desse total, 138,7 mil (45,9%) votaram em Bolsonaro no segundo turno de 2018 e apenas 68.832 (22,8%) em Haddad. Abstenção, votos brancos e nulos somaram 94.832 eleitores (31,4%).

Nessa RE de Jacarepaguá, a letalidade é de 8,4%, com 15.243 casos e 1.275 óbitos.

Já a região eleitoral da Ilha do Governador, que também fica na Zona Norte, 47% (79.957) dos seus 169.962 eleitores deram votos a Bolsonaro. Haddad teve somente 20,8% dos votos (35.401) e as abstenções e brancos e nulos somaram 54.604 votos (32,1%). Na Ilha, a letalidade é de 8% (5.042 casos, 403 óbitos).

Como se pode ver, os dados de votação e de letalidade de covid-19 no universo dos bairros cariocas confirmam as tendências levantadas pelos demais estudos: as regiões que mais votaram em Bolsonaro em 2018 são as mais atingidas pela epidemia de covid-19. A política (ou a falta de política) do presidente para a epidemia vem fazendo mais vítimas entre seus próprios eleitores.

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