Antes exemplo de democratização na África, estabilidade do Mali começou a deteriorar-se em 2012: após rebelião tuaregue, seguiram-se avanço jihadista e sucessivos golpes de Estado. Retorno à democracia é árduo.
Por António Cascais, compartilhado de DW
A atual crise política e de segurança no Mali é uma continuação de eventos ocorridos uma década atrás: em janeiro de 2012, rebeldes separatistas tuaregues começaram a atacar localidades e bases militares no norte do país.
Lutando sob a bandeira do Movimento Nacional para Libertação de Azawad (MNLA, na sigla em francês), em 31 de março eles conseguiram derrotar as forças do governo e tomar Gao, cidade estrategicamente importante à margem do rio Tigre, na região nordeste.
“Foi um evento dramático, que ficou gravado a fogo na consciência dos malineses”, comenta Hassane Kone, do Instituto de Estudos de Segurança, um think tank baseado na África.
O grupo nômade, que anteriormente assumira o controle da cidade-chave de Kidal, tomou com relativa facilidade Timbuctu, localidade histórica no deserto do Saara. Menos de uma semana mais tarde, os rebeldes declararam o Estado independente de Azawad, tendo Gao como capital.
Golpe facilita avanço tuaregue
Os pastores nômades tuaregues, que tradicionalmente vagavam pelo Saara, na África Ocidental, haviam ganhado terreno aproveitando-se da situação política caótica do Mali, abalada pouco antes por um golpe de Estado. Em março de 2012, militares derrubaram o governo democraticamente eleito de Amadou Toumani Toure.
O estopim fora a frustração das Forças Armadas nacionais pela forma como o governo gerira a rebelião tuaregue, e pela falha em equipar devidamente as tropas para combaterem os separatistas. Os tuaregues haviam sido treinados para combate na Líbia e estavam equipados com armamentos pesados pilhados dos arsenais de Muammar al Kadafi, depois que o líder líbio foi derrubado, em 2011.
O golpe do Mali ocorreu pouco antes da data prevista para as eleições presidenciais. Toure, que já vencera dois mandatos, não podia voltar a concorrer em 2012, devido a limitações constitucionais. Segundo Kone, ele “só se importava com o próprio futuro político”.
“As eleições eram iminentes, e havia boatos que os adeptos e familiares de Toure planejavam uma emenda da Constituição para prolongar sua permanência no cargo.” Por isso o governo de Toure teria “negligenciado” a rebelião tuaregue.
Tuaregues abrem caminho para jihadistas
Contudo os rebeldes não conseguiram manter por muito tempo o controle sobre o Norte malinês. Apenas dois meses depois de ter tomado Gao, o MNLA foi expulso por facções jihadistas, que também ocuparam outras cidades e aldeias setentrionais.
Essas facções incluíam o Ansar ed-Din (Movimento dos Defensores da Fé), o grupo militante Movimento pela Unidade e o Jihad na África Ocidental (MUJAO), ligado à Al Qaeda, e a Al Qaeda no Magrebe Islâmico (AQIM).
Cavalaria de camelos combate o terrorismo no Saara
Mais tarde, tropas lideradas pela França conseguira, recapturar Gao e outros redutos extremistas. No entanto, mesmo com o respaldo de missões militares internacionais, desde então o Mali tem tido dificuldades em conter essa insurgência islamista.
Nas duas décadas antes do golpe e da retirada das forças malinesas do Norte, o país era estável e pacífico, ostentado como glorioso exemplo de democratização na África pós-colonial. No entanto, a cadeia de eventos do primeiro trimestre de 2012 desencadeou um ciclo de dissolução política que repercute até hoje.
“A miséria do Mali começou com um golpe militar, e depois mais golpes se seguiram”, explica Hassane Kone, referindo-se aos atos de usurpação de 2020 e 2021, fonte de ainda mais deterioração política e de segurança no Mali.
Ineficácia de missões internacionais
Diversas missões militares internacionais, entre as quais a Minusma, das Nações Unidas, e a EUTM, de treinamento pela União Europeia, estiveram no Mali desde 2013, numa tentativa de estabilizar o país e reforçar o combate aos grupos terroristas.
No entanto, elas são basicamente avaliadas como fracassos. As fronteiras com a Mauritânia, Burkina Faso e Costa de Marfim, em particular, se tornaram focos de terrorismo.
Segundo uma análise do Ministério alemão de Cooperação Econômica e Desenvolvimento, o país ainda se encontra sob estado de emergência generalizado; atentados terroristas podem ocorrer em qualquer parte, sobretudo no Norte e no Centro. Cerca de 1.300 soldados da Alemanha já estiveram estacionados no Mali, no âmbito das missões internacionais.
Cifras da ONU indicam que em setembro de 2021 havia cerca de 400 mil deslocados internos no país, quatro vezes mais do que um ano antes. De uma população de 20 milhões, aproximadamente 7 milhões necessitam assistência, devido ao quadro humanitário em declínio. “O balanço destes últimos anos é devastador”, resume Kone, do think tank Instituto de Estudos de Segurança.
Dois golpes de Estado recentes pioraram ainda mais a situação. Em agosto de 2020, militares liderados por Assimi Goita derrubaram o presidente Ibrahim Boubacar Keita, democraticamente eleito. Em maio de 2021, as mesmas forças voltaram a tomar o poder, eliminando o governo interino que haviam instalado sob pressão da comunidade internacional.
Perigo de uma mera fachada democrática
Poucos meses depois, os golpistas anunciaram que sustariam a realização de eleições presidenciais e legislativas por até cinco anos. Em resposta, tanto a União Africana quanto a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao) suspenderam a filiação do Mali.
Somando-se a todos esses distúrbios, em fevereiro de 2022 a Françaanunciou a retirada de suas tropas, após nove anos estacionadas no Norte do Mali para combater os jihadistas. Por sua parte, o governo em Bamako classificou a missão miltar francesa como ineficaz e acusou a antiga potência colonizadora de interferir em assuntos internos.
Diversos países, entre os quais a Alemanha, e organizações internacionais como a ONU e a União Africana têm apelado para que o Mali retorne à democracia. Uma década após a rebelião tuaregue e a ascensão do terrorismo jihadista no Norte malinês, contudo, o analista político Bakary Sambe crê que a única chance de retorno à estabilidade seria por um processo de reconciliação nacional.
“Só o estabelecimento de uma democracia real pode levar à reconciliação que inclua todas as minorias do Mali”, afirma o diretor regional do think tank malinês Timbuktu Institute. Do contrário, o Mali corre o risco de “manter uma fachada democrática”, que resolveria problemas eleitorais de curto prazo, mas sem encarar os desafios enfrentados pelo país