Por Luis Nassif, publicado em Jornal GGN –
Ao longo da carreira de jornalista, convivi com toda sorte de falsos especialistas. São jornalistas que acompanham determinado tema e se apropriam de conclusões das fontes, sem conhecimento por inteiro do objeto analisado. O jornalismo econômico está repleto desse tipo, especialmente depois que a economia foi alçada à condição de dogma religioso. Mas faz parte do exercício jornalístico, do especialista em vários temas – ou seja, em nenhum – que se torne o boneco de ventríloquo das fontes que respeita.
Mas não esperava ver esse tipo de superficialidade reiterada na fala de um Ministro do Supremo. A não ser no episódio do “mensalão”, no qual os Ministros entraram em um porre homérico de visibilidade, e Ayres Brito saiu cacarejando seus conhecimentos de física quântica, os Ministros são absolutamente ciosos de seu nível de conhecimento e, em geral, limitam-se a argumentar ou sofismar em seu campo de especialidade.
Por isso causou espécie o Ministro Luís Roberto Barroso, quando passou a pontificar sobre política e economia com a profundidade de um mancheteiro de jornal.
Apresentou estatísticas segundo as quais o Brasil respondia por 95% das ações trabalhistas no mundo. Depois, comprou sem analisar a tese de que o Citibank estaria saindo do Brasil devido à legislação trabalhista. Soube-se, então, que os dados tinham sido recolhidos em uma conversa informal com Flávio Rocha, o pitoresco dono das Lojas Riachuelo, campeão de ações trabalhistas. Então é assim que um Ministro da mais alta corte forma seu juízo?
Recentemente saudou a redução da pobreza do país, como se fosse uma consequência automática da Constituição e não resultado de políticas públicas. Políticas, aliás, que estão sendo desmontadas por decisões do interino Temer, avalizadas pelo palestrante Barroso.
Percebeu-se, ali, que o magistrado Barroso não havia nunca deixado de lado o advogado Barroso. Ou seja, o sujeito incumbido de levantar apenas os dados que interessam para a defesa do cliente. Mais que isso, com total falta de senso, igualando-o – ele, um Ministro da Suprema Corte – a meros palpiteiros de redes sociais.
Mas não ficou nisso.
Em determinado momento, aderiu à tese da prisão após julgamento em segunda instância, surpreendendo os que conheciam sua ação pregressa como advogado. E, em defesa da tese, manipulou conclusões de uma estatística sobre as sentenças em terceira instância, ignorando todos os casos em que houve redução das penas das sentenças anteriores.
Não era mais o mancheteiro opinando sobre temas que não conhecia, mas um Ministro do Supremo manipulando estatísticas. E, pior, estatísticas de conhecimento público. Ali, sua idoneidade intelectual passou a entrar em xeque, situação agravada pela maneira como procurou se isentar de palestras altamente remuneradas para repartições públicas.
Para justificar sua mudança de entendimento sobre prisão em segundo grau, Barroso desenvolveu a tese da “mutação constitucional” e apresentou 7 casos paradigmáticos, nos quais estaria a prova do uso de embargos para postergar a punição.
Andrei Zenkner Schmidt e Guilherme Boaro, advogados gaúchos, resolveram analisar os 7 casos apresentados por Barroso. E comprovaram mais uma vez a manipulação contumaz do Ministro.
Dois exemplos dos levantamentos de ambos.
Caso Pimenta Neves
O crime ocorreu em 20/8/2000. A denúncia foi oferecida em 28/8/2000. O júri realizou-se no dia 5/5/2006. A apelação, distribuída em 5/7/2006, foi julgada em 26/12/2006. O recurso especial, distribuído em 11/12/2007 (REsp 1.012.187), foi julgado em 2/9/2008. Contra o acórdão, a defesa manejou embargos declaratórios em 22/10/2008, julgados em 11/12/2008. Os autos foram, então, remetidos ao STF, para exame do recurso extraordinário, que subiu via agravo de instrumento (AI 795.677). O recurso foi distribuído em 12/4/2010 e julgado em 24/5/2011, com expedição de ordem de prisão. Essa decisão foi publicada em 10/10/2011. Não foram interpostos embargos declaratórios.
Da análise dos 11 anos de tramitação entre o fato e a prisão, pode-se perceber que a instância ordinária foi a responsável pela maior morosidade do caso. Ao todo, foram mais de seis anos de tramitação (entre 2000 e 2006), sendo que boa parte desse período transcorreu em 1º grau de jurisdição. Os recursos especial e extraordinário foram julgados em quatro anos (entre 2007 e 2011). A defesa ingressou, ao todo, com um recurso especial, um embargo declaratório e um agravo de instrumento.
O caso, portanto, contradiz a conclusão do ministro. Não houve a interposição de recursos protelatórios. A maior demora ficou a cargo da jurisdição de 1º grau. A tramitação dos recursos no STJ e no STF, embora pudesse ser mais ágil, seguiu os padrões temporais normais. Digno de menção, ainda, que o STF demorou quase cinco meses para publicar o acórdão que julgou o recurso extraordinário.
Caso Luiz Estevão
Transcorreram 24 anos entre a data do fato (1992) e a data da prisão (2016). Do total, oito anos entre a data do fato e a propositura da ação penal, nove anos entre o recebimento da denúncia e o início da jurisdição do STJ, e sete anos entre o início da jurisdição do STJ e a expedição dos mandados de prisão. Esses dados também contradizem a argumentação do ministro Luís Roberto Barroso — no sentido de que a jurisdição do STJ e do STF seria decisiva para o “descrédito do sistema de Justiça Penal” —, pois 70,8% do tempo de tramitação do caso deveu-se à condução pelas instâncias ordinárias, ao passo que 29,1% do tempo foi gerenciado pelo STJ e STF.
E prosseguem analisando os demais casos.
Qual a conclusão se tira disso? O Ministro Barroso não é um iluminista, aquele que persegue a verdade dos fatos, que tem a percuciência de constatar que a terra é redonda e a coragem de proclamar sua descoberta. Ele manipula dados e conclusões para adaptá-los às suas teses. E, pior, com o talento de um mancheteiro de primeira página de jornal sensacionalista. Como aquele que olha a linha do horizonte para garantir que a terra é plana. E condena ao Santo Ofício quem ousar discordar.