Manipulações midiáticas sobre a geopolítica palestina

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Maioria dos “especialistas” ouvidos pela mídia sobre o conflito Israel-Hamas se limitaram a repetir os mesmos chavões presentes nas “análises” de articulistas “isentos”, como Demétrio Magnoli, Jorge Pontual e Guga Chacra.

POR FRANCISCO FERNANDES LADEIRA, COMPARTILHADO DA REVISTA FÓRUM

Na foto: Demétrio Magnoli e Guga Chacra na GloboNews. Reprodução/GloboNews

Nas coberturas internacionais da grande imprensa brasileira, a linha editorial predominante sempre será aquela que esteja em acordo com os interesses das agendas externas das potências imperialistas. Não há exceção.




Nesse sentido, para tentar atrair a adesão do público, os discursos geopolíticos da mídia recorrem a determinados atalhos cognitivos (recursos linguísticos para tornar inteligível para o cidadão comum a caótica configuração das relações internacionais) e utilizam estratégias de manipulação como enquadramentos, fragmentação dos fatos, ocultação de condicionantes históricos e escolha de certas fontes em detrimento de outras.

No último sábado (7), a manchete dos noticiários internacionais dos principais veículos de comunicação do país (com poucas variações) foi a seguinte: “Ataque do grupo terrorista palestino Hamas surpreende Israel”.

Para o leitor/telespectador/ouvinte que não está familiarizado com a geopolítica palestina, a impressão é a de que o Estado de Israel foi “vítima” de um “ataque gratuito” dos “terroristas do Hamas”.

No entanto, se trata de pura manipulação midiática.

Conforme afirmou o professor Reginaldo Nasser, em entrevista à Fórum, o rótulo de “terrorista” ao Hamas é completamente inadequado, haja vista que o grupo, atualmente, é uma organização política que, na verdade, deflagrou uma operação militar contra o cerco ao seu território (Faixa de Gaza). Ou seja, não houve um “ataque à Israel”, mas uma “reação legítima” à ocupação israelense exercida sobre o território que pertencente, por direito, ao povo palestino. 

Mas as manipulações midiáticas não pararam por aí. Como já bem apontou Perseu Abramo, uma das principais estratégias de manipulação da grande imprensa brasileira é o chamado “padrão de ocultação”, que se refere à ausência e à presença dos fatos reais na produção jornalística. Não se trata, evidentemente, de fruto do desconhecimento, e nem mesmo de mera omissão diante do real. É, ao contrário, um deliberado silêncio militante sobre a realidade.

Desse modo, é ocultado nos noticiários a informação de que Gaza – cercada por terra, mar e ar pelo Estado de Israel – apresenta uma das piores situações humanitárias no mundo (onde a insegurança alimentar é extremamente alta, chegando a 75-80% e, ainda por cima, há um controle rigoroso sobre a entrada de alimentos).

Além disso, é importante lembrar do silêncio midiático sobre a recente onda de ações do governo de extrema direita de Benjamin Netanyahu contra os palestinos, sobretudo em locais sagrados para o Islã, como a Mesquita de Al-Aqsa. Trata-se do motivo alegado pelo Hamas para a ofensiva contra Israel. Qualquer jornalismo minimamente plural, que ouve os dois lados de um conflito, teria mencionado esta questão.

Consequentemente, na grande mídia, as investidas do grupo palestino contra o Estado Sionista não tiveram causas; somente consequências. Desse modo, ocultando os fatos citados acima, é possível construir a narrativa de “ataque terrorista surpresa contra Israel”.

Mas não basta rotular o Hamas como “terrorista” e Israel como “vítima”, constituindo o atalho cognitivo maniqueísta de dividir o mundo entre “bem” e o “mal”. É preciso gerar aquilo que o linguista francês, especialista em Análise do Discurso, Patrick Charaudeau, chama de “efeito patêmico”, cujo objetivo é o engajamento/envolvimento da instância da recepção, por meio de performance no mundo dos afetos, despertando no público sentimentos como ódio, compaixão, tristeza e/ou solidariedade.

Assim, são incessantemente mostradas imagens das vítimas israelenses dos “ataques do Hamas”. As perdas do outro lado, diga-se de passagem, em número muito maior, são estrategicamente negligenciadas. Não por acaso, as reportagens em Israel privilegiam as perdas humanas; enquanto as notícias sobre Gaza enfatizam as perdas materiais.

Também nessa linha, é construído o discurso de que o exército de Israel visa somente “instalações militares” e o Hamas “ataca, sobretudo, a população civil; logo, é terrorismo”.

Felizmente, essa manipulação foi desmentida pela professora Isabela Agostinelli dos Santos, em plena Globonews, no programa Edição das 17h, ao afirmar que, qualquer pesquisa rápida, é suficiente para se constatar que os bombardeios de Israel atingiram civis e hospitais em Gaza. Portanto, segundo a professora, “os palestinos têm o direito de se defender, da forma como puder”.

No entanto, ao contrário de Isabela, a maioria dos “especialistas” ouvidos pela mídia sobre o conflito Israel-Hamas se limitaram a repetir os mesmos chavões, maniqueísmos e lugares-comuns presentes nas “análises” de articulistas “isentos”, como Demétrio Magnoli, Jorge Pontual e Guga Chacra. “A Comunidade Internacional condena os ataques terroristas do regime do Hamas a Israel”, foi o que mais se ouviu/leu nos noticiários nos últimos dias.  

Aqui, os discursos geopolíticos da mídia recorrem a um recurso metonímico, que visa difundir os interesses das grandes potências como se também fossem os interesses de todo o planeta. A expressão “Comunidade Internacional” não está relacionada a um possível consenso entre as diferentes nações sobre uma questão geopolítica. Ela geralmente reflete tacitamente os posicionamentos dos Estados Unidos e seus aliados.

Países como China, Rússia, Noruega e Suíça, membros da “Comunidade Internacional”, não rotulam o Hamas como uma “organização terrorista”.

Já o termo “regime” está associado a autoritarismo, desrespeito aos direitos humanos ou ausência de liberdades individuais. Nessa lógica, não vemos nos noticiários referências como “o regime de Israel” ou “o regime dos Estados Unidos”.

Por fim, remetendo à memória geopolítica do público, a mídia hegemônica está tentando emplacar a narrativa de que o “ataque terrorista do Hamas” é o “11 de setembro israelense”.

Isso não é por acaso. O “11 de setembro” talvez seja o maior exemplo de como o “evento midiático” substituiu o “acontecimento histórico” no imaginário coletivo. A maioria das pessoas não lembra do “11 de setembro” em toda sua complexidade, como uma “resposta” dos povos muçulmanos a anos de humilhações impostas pelos Estados Unidos (o “acontecimento histórico”); mas a partir das imagens de indivíduos se jogando desesperadamente das Torres Gêmeas do World Trade Center (o “evento midiático”). Ou seja, lembram da “forma” em detrimento do “conteúdo”.

Assim, os ataques de Al Qaeda e Hamas – contra Estados Unidos e Israel, respectivamente – podem ser percebidos como algo que “aconteceu do nada”, por meio das ações de “fanáticos muçulmanos”.

No entanto, ao contrário de duas décadas atrás, quando os grandes grupos de comunicação reinavam praticamente soberanos no tocante à difusão de informações sobre os principais acontecimentos planetários; atualmente, com as redes sociais, temos acesso a visões alternativas sobre a geopolítica global, o que torna mais difícil para a mídia hegemônica transformar sua construção discursiva em “versão oficial” de um determinado acontecimento (naquilo que Noam Chomsky designava como “consenso fabricado”).

Por isso, mais do que nunca, é importante desvelar a ideologia dos noticiários internacionais, seus mecanismos manipuladores e armadilhas discursivas.

Receptores críticos, que checam informações e comparam diferentes tipos de fontes dificilmente serão alvos vulneráveis às narrativas da grande mídia.

Assim, ao compreendermos a linguagem utilizada pelos veículos de comunicação, não ficamos reféns de uma linha editorial que busca explicações simplórias e tendenciosas para os mais complexos temas da atualidade. Significa, sobretudo, não se tornar um “analfabeto geopolítico”.

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