Por Carlos Marcos, compartilhado de El País –
O cantor, que desapareceu renegando da fama, prefere atuar em bares, apoia causas minoritárias e dá canções de presente. Nos últimos dias, o coronavírus o devolve à atualidade
Aconteceu num dos momentos culminantes da sua carreira, depois de concluir a etapa do Mano Negra e logo antes de publicar seu primeiro disco solo, Clandestino. Era julho de 1998 e Manu Chao (Paris, 58 anos) havia embarcado num projeto chamado La Feria de las Mentiras, um festival que reunia malabaristas, DJs, shows, teatro… Um projeto ambicioso que precisou de meses de preparação e uma zelosa tarefa de contabilidade para que não fosse deficitário. Optou-se por desenvolvê-lo em Santiago de Compostela, no Mercado de Gado de Salgueiriños. Milhares de pessoas tinham comprado o ingresso por 5.000 pesetas (30 euros, 172 reais pelo câmbio atual). O recinto estava cercado, e uma empresa de segurança foi contratada para controlar os acessos. Mas alguns encontraram um lugar pouco vigiado. Alguns minutos depois do começo do show, Manu Chao estava lá, ajudando um grupo de penetras. O chefe boicotando a si mesmo. Empurrava uma das cercas e estimulava fãs a entrarem mesmo sem terem passado pela bilheteria. “Venham, venham, rápido, passem.” Os espectadores furtivos nem reconheceram o cantor, com a cabeça encapuzada. Passaram-se mais de duas décadas daquilo, e desde então Manu Chao só acentuou este espírito indômito, temerário e contraditório.
Nos últimos dias, fez algo que andava evitando neste século: equiparar-se a astros como Alejandro Sanz ou Bon Jovi. Como: publicando um vídeo com canções para aliviar o confinamento das pessoas. Com esta ação generosa, o cantor recordou ao público maciço que continua aí, que não está desaparecido. Embora, na verdade, sempre tenha estado ativo, mas esquivando o sistema.
Manu Chao não tem gravadora; não faz turnês como as dos artistas de sua categoria; tem ofertas para tocar nos melhores festivais do mundo, mas não quer; não se interessa por entrevistas; não lança discos; não aparece para receber prêmios; não usa celular…
Tudo isso não o impede de estar fazendo coisas o tempo todo. Você pode encontrá-lo atuando num bar de bairro, sem avisar, ou camuflado com outro nome. Ou escutar suas novas canções em seu site. O artista foi apanhado pela mano negra do coronavírus enquanto fazia uma turnê pela Índia, Bangladesh, Sri Lanka, Filipinas… Salas pequenas e em formato acústico de trio. Quando a coisa ficou feia, conseguiu chegar ao seu apartamento de Barcelona, de onde está gravando canções que publica em suas redes sociais com o nome de Coronarictus Smily Killer Sessions. Algumas são versões de canções dele (Otro Mundo), de outros, como Kiko Veneno (Echo de Menos), ou temas que aparentemente são novos (Mi Libertad).
Certamente não existe um músico nos últimos anos como ele, capaz de dar as costas ao sistema quando poderia tirar tantas coisas dele. Chao foi um campeão de vendas em nível mundial no final dos anos noventa, com discos como Clandestino (1998) e Próxima Estación, Esperanza (2001), que juntos despacharam quatro milhões de cópias. Chao lapidou aquela música bastarda de seu ex-grupo Mano Negra, acelerada e desordeira, e propôs algo mais pausado, melancólico. Reggae, rumba, ritmos latinos… para um disco, Clandestino, canônico no que se chamou de mestiçagem. Crucial a parte da mensagem, resumida em duas ideias que repetiu naqueles anos: “Tudo é mentira” e “Vivemos a ditadura da economia”.
Manu Chao não tem gravadora; não faz turnês como as dos artistas de sua categoria; tem ofertas para tocar nos melhores festivais do mundo, mas não quer; não se interessa por entrevistas; não lança discos; não aparece para receber prêmios; não usa celular…
“São canções simples, mas há muita verdade e sinceridade. Manu utiliza as palavras adequadas. Tudo parece fácil, mas tem uma grande complexidade”, observa a cantora Amparo Sánchez, cujo projeto musical mais conhecido é o Amparanoia. Sánchez colabora com Chao há 25 anos. “É um artista crucial para entender o devir do rock na América Latina durante os anos oitenta e noventa. Também é um entroncamento entre a música europeia e africana. Sua marca é crucial e indiscutível”, afirma o jornalista Bruno Galindo, que compartilhou com Chao uma longa viagem pelo Brasil.
Mas Manu Chao viu as longas garras da fama chegarem perto demais e fugiu. As encontrou, olhou-as de frente e lhes disse: “Não me quero sentir como um boneco numa tempestade”. A troco de quê? “Em um sentido mais amplo, a troco de liberdade”, afirma Kike Babas, autor, com Kike Turrón, do recente Manu Chao. Ilegal. Perseguiendo el Clandestino (Bao Bilbao Ediciones). “A missão de Manu é viver a vida, viajar, não cair na rotina. Um de seus exemplos é Bob Marley. Acredito que Manu vive e sente a vida como Marley”, afirma Turrón.
Amparo Sánchez recorda como começou sua relação com Chao. “Era 1995 e eu acabava de chegar a Madri. Tinha 25 anos. Costumava ir pela rua Madera [no centro] para ensaiar carregando meu violão e o tripé do microfone. E sempre cruzava com um sujeito pequeno que me cumprimentava. Eu era fã do Mano Negra, mas não reconhecia Manu quando me dizia ‘olá’. Um dia decidimos tomar uma cerveja em um bar da praça Dos de Mayo. Falamos por três horas. Contou-me suas viagens pela América Latina, as causas sociais que lhe pareciam interessantes… Mas eu continuava sem localizá-lo e ele não disse nada. Ao ir embora me comentou que tinha um grupo e que ensaiavam num porão próximo, que passasse por lá um dia. E passei. Abriu ele mesmo a porta e percebi que era o Mano Negra.”
Nascido em Paris de pai galego (Ramón) e mãe basca (Felisa), Manu Chao não se interessava muito pelos livros que enchiam a sala da sua casa de classe média. Preferia a rua. Ramón Chao (Lugo, 1935 – Barcelona, 2018), seu pai, era um jornalista e escritor que trabalhava para veículos como o Le Monde e recebia prêmios literários. Os dois filhos do casal, Antonie (nascido em 1964) e José Manuel, o Manu (em 1961), começam de adolescentes a tocar rock. Manu forma bandas como Hot Pants e Los Carayos… e o Mano Negra, junto com seu irmão, que começou em 1987 com sua mistura de punk, ska e ritmos latinos e se manteve num caminho ascendente em popularidade até sua dissolução em 1997.
Quem compartilha vivências com ele salienta seu caráter austero: “Quando você se senta para comer com ele, não há dois pratos e sobremesa. Você só belisca”. “O lugar mais incômodo onde já dormi na minha vida foi com Manu: em um povoado do Brasil, numa espécie de armário”. “Compra roupas em lojas de segunda mão.”
A ruptura do Mano Negra, que acabou em julgamento, destroçou Chao. “Foi uma etapa de grande desânimo. Inclusive ele cogita deixar a música. O final do grupo lhe causou muito desgaste e a isto se uniu uma separação sentimental. Deprime-se. Pensa em virar trabalhador social na África ou em seguir os passos do seu pai e virar jornalista”, afirma o escritor Kike Babas.
Chao opta por uma viagem terapêutica pela América Latina que lhe salvaria tanto emocional como criativamente. Conhece sua namorada no Brasil e se nutre dos ritmos latinos. Toda esta melancolia latina será o arcabouço de Clandestino, que grava ao regressar à Espanha. “O sucesso de Clandestino nos pegou de surpresa. Não o esperávamos na gravadora, e acho que Manu tampouco. Ele sempre foi muito honesto, um músico que se nutre do bairro, que prefere tocar com músicos desconhecidos que conhece num bar a tocar com grandes nomes”, conta Javier Liñán, a pessoa de confiança do franco-espanhol em sua etapa na multinacional Virgin. O disco vendeu milhões de cópias. Música em espanhol acotovelando-se com os que triunfavam naquela época: Britney Spears, NSYNC, Eminem, Limp Bizkit…
Sagrario Luna conhece Manu Chao desde que formou o Hot Pants, no final dos anos oitenta. “Lembro que naquela época só falava de Chuck Berry e Camarón e usava um pequeno topete”, comenta. Depois trabalhou com ele em turnês e na Virgin. “Era trabalhar com um colega”, observa. “Durante muito tempo, ser Manu Chao pesou muito para Manu Chao. Depois do sucesso de Clandestino, todo mundo lhe pedia opinião sobre tudo, e acho que isso lhe gerou muita frustração”, diz Luna. E acrescenta: “Sempre me pareceu um sujeito de verdade. Tem nuances, como todos, mas nunca foi falso. Por outro lado, o achava bastante solitário, com poucos amigos, dos quais, isso sim, cuidava muito”. O discurso de Chao naquela época tem tintas de visionário. Alerta sobre o populismo xenófobo, o integralismo religioso, a morte do formato físico na música. E cria um movimento ao redor dele. Assim o definiu Fermín Muguruza, músico que também colaborou com o artista: “Formou-se uma rede internacional do rock em que estavam todos remando para conseguir um mundo melhor”.
Para entender a posição fora de foco atual do músico, é preciso revisar dois episódios de sua vida, decepções que tiraram a pouca fé que ele tinha no establishment. Uma delas é com Iggy Pop, um músico a quem Chao admirava… até que o Mano Negra abriu um show do líder dos Stooges. Assim contou ele certa vez à revista Tentaciones, do EL PAÍS: “Com Iggy Pop aprendemos a dura lei de show-business. Boicotaram o nosso som, proibiram o pessoal do catering de nos dar de comer, às vezes até nos proibiram de tocar. E, no final, o numerozinho. Quando alguém da segurança – às vezes o próprio filho do Iggy, que trabalhava na turnê – empurrava alguém que tentava subir ao palco, Iggy dizia: Ei, você, seu filho de puta, não toque no meu público!’. E toda a plateia pensando: ‘Que cara mais maneiro é o Iggy’”.
E o segundo episódio tem a ver com seu compromisso social. Em julho de 2001 o cantor vai a Gênova (Itália) para protestar, com muitos milhares mais, durante a reunião dos países mais poderosos, o G-8. O anfitrião é Silvio Berlusconi, à época primeiro-ministro italiano. Chao atua e no dia seguinte participa, esmurrando um tambor, de uma grande manifestação contra a política do G-8. E vai embora para a França. No dia seguinte, o caos. Um grupo de manifestantes violentos entra em ação, e a polícia italiana revida com força. As imagens corem o mundo, com manifestantes pacifistas envoltos num furacão de violência. Chao vê tudo pela televisão da sua casa, em Paris, e fica horrorizado.
Muitos o reclamam como o líder antiglobalização que as ruas necessitam. Ele primeiro fala. “Esse movimento não necessita de líderes, se houver líderes é nefasto para o movimento. Essa etiqueta do líder do movimento eu rejeito”, afirma numa entrevista coletiva em Valência, antes de um show, em setembro de 2001. E, nos anos seguintes, reluta a todo custo em aparecer no noticiário. Procura batalhas antimidiáticas, lutas de pequenas comunidades. Como as reivindicações salariais das trabalhadoras do Serviço de Atendimento Domiciliar (SAD) de Barcelona; em Mendoza (Argentina), para apoiar que não se permita o fracking e a mineração em grande escala; incentivando as chamadas kellys (camareiras de hotéis); em defesa do povo mapuche; ao lado dos migrantes; contra a multinacional Monsanto… Aparece sempre com seu violãozinho, vestido com suas eternas calças corsário e com seu perene sorriso desenhado no rosto. Chao escuta, canta e apoia economicamente. Não sai na imprensa, poucos ficam sabendo.
“Manu se dói pelo mundo. E se acalma indo aos lugares e apoiando causas pequenas que considere justas. Em seus shows grandes, sempre deixa um lugar para que estes coletivos se expressem. Em um momento dado do show, para e sobem ao palco para se expressarem, como ocorreu em 2016 na Plaza Mayor de Madri”, diz Kike Babas, que foi o contato entre o artista e a equipe de Manuela Carmena, então prefeita da capital, para celebrar o recital. “Quis estar em Madri porque depois de muitos anos na capital se respiravam outros ares. Mas deixou muito claro que não queria que o vinculassem nem com algum partido político nem com o [movimento de indignação popular] do 15-M”, diz Babas.
Quem compartilha vivências com ele salienta seu caráter austero: “Quando você se senta para comer com ele, não há dois pratos e sobremesa. Você só belisca”; “o lugar mais incômodo onde já dormi na minha vida foi com o Manu: em um povoado do Brasil, numa espécie de armário; “compra roupas em lojas de segunda mão”… Amparo Sánchez conta uma história curiosa a respeito: “Manu já era uma estrela, mas recordo que quando marcávamos de nos encontrar ficávamos sentados na porta de um prédio, com cigarros e uma cerveja, e ali passávamos as horas falando”. O artista pode se permitir esta vida errante e livre de grilhões (familiares, profissionais…) porque sua conta corrente é generosa. “As vendas de seus dois primeiros discos solo e os direitos autorais são suficientes para que ele e sua descendência vivam de forma bastante folgada”, diz uma fonte. A julgar pelas canções que publica em seu site, não se vislumbra uma evolução musical. “Não acredito que precise nem que a busque. Interessa-se pela cultura popular, pelo bairro, pelo músico que trabalha na rua”, aponta Liñán.
Sua casa em Barcelona tem 80 metros quadrados e é uma espécie de oficina de trabalho, com um computador, lembranças dos lugares por onde viaja e, num canto, um catre “que não parece muito cômodo”. Passa ao menos uma vez ao ano pelo Brasil, onde vive, no Ceará, seu único filho, Kira, que já tem mais de 20 anos.
No ano que vem Manu Chao completará 60 anos. Manteve-se sempre afastado das drogas duras: preferiu fumar maconha e beber licores depois da refeição, mas de forma comedida. Conserva-se juvenil. É pequeno, magro e fibroso. Corre, joga futebol e se mexe, sempre se mexe. Sua última canção confinada se chama Mi Libertad. Diz assim: “Minha liberdade, minha companheira, minha liberdade, minha solidão”.