Por Álec Silva, Ana Paula Carvalho, Bruno Sousa, Ellen Marques, Gabrielle Araújo, Júlio César Félix, Laerte Breno, Lua Guerreiro, Patrick Mendes, Taís Sales, Thaynara Santos, publicado em The Intercept Brasil –
Do lado de dentro do enorme muro pintado de bege, a piscina só serve de enfeite. Ninguém pode usar. Ali não há João, Pedro, Marcelo: os nomes de registro foram substituídos por números de identificação. Quem não decora o seu número corre o risco de apanhar, já que não atenderá quando for chamado. A solução é anotar os dígitos nas mãos e repetir a informação até decorar.
Estamos no Centro de Socioeducação Dom Bosco, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. É uma construção gelada cercada por um muro alto, longos corredores de concreto batido e grades robustas. O centro não deveria parecer uma cadeia – mas parece, assim como todas as outras unidades de internação do Departamento Geral de Ações Educativas, o Degase, órgão estadual do Rio de Janeiro responsável por aplicar medidas socioeducativas em adolescentes de 12 a 17 anos. A lei prevê que os centros como o Degase devem servir para orientar adolescentes que cometeram infrações a conviver melhor na sociedade e família.
Aconteceu o contrário com DG*, Vinícius* e Fernando*.
O Degase tem oito unidades de regime fechado e 16 de semiaberto que, juntas, receberam no mês de maio 2.153 adolescentes. Para entender o que acontece quando um menor de idade é apreendido pela polícia e precisa cumprir pena, conversamos com três jovens que deixaram o sistema e visitamos quatro unidades. Elas recebem adolescentes que cometeram, em sua maioria, roubos e tráfico de drogas, os atos infracionais mais frequentes no estado do Rio. Nessas unidades, o índice de reincidência é alto. Quase nove em cada dez jovens que saíram de lá foram detidos de novo.
O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo determina a aplicação de medidas mais leves em caso de falta de vagas, mas as unidades de regime fechado estão superlotadas – operam 67% acima da capacidade.
Segundo um levantamento do próprio Degase, 77% dos jovens não estudam – o que, em tese, seria obrigatório, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Como o número de agentes é insuficiente, não há quem leve os jovens dos alojamentos até as salas de aula, que funcionam em escolas dentro das instalações ou em prédios anexos. Faltam agentes até para levá-los para o atendimento médico fora das unidades. As poucas atividades lúdicas só são possíveis por conta da perseverança e investimento pessoal dos socioeducadores ou atuação de ONGs.
Desde o momento da apreensão pela polícia, o que acontece com os jovens detidos é uma série de violações muito diferente do que a lei prevê. Para Vinícius, Fernando e DG – que, por serem menores de idade, não serão identificados com seus nomes verdadeiros –, os termos técnicos “unidade”, “socioeducação” e “medida” são eufemismos para “cadeia”, “prisão” e “violência”.
‘Já saiu, marginal?’
Vinícius passou 48 horas dentro do Degase. Foi o suficiente para sair com mais ódio.
Era para ser apenas um banho, daqueles bem relaxantes após o tradicional futebol com a rapaziada nas noites de sexta-feira. Mas não houve tempo para fechar o registro naquele julho de 2018. A água ainda jorrava quando Vinícius* se assustou com os gritos de agentes da Operação Lapa Presente, que invadiram sua casa no centro do Rio afirmando que lá funcionaria uma boca de fumo.
“Escutei uma correria e, poucos segundos depois, me tiraram do banheiro e botaram um saco de drogas na minha mão. Eu disse que não era meu, mas eles não queriam saber, disseram que era meu, sim, e me levaram”, disse. Vinícius conta que de nada valeram os protestos do padrasto e do irmão, que assistiam à televisão no momento da apreensão, tampouco da mãe, que largou as tarefas da cozinha na tentativa de comprovar, com a Carteira de Trabalho em punho, que o filho era jovem aprendiz numa rede de combustíveis.
O adolescente de 17 anos diz que saiu algemado da própria casa, no centro do Rio, e ficou duas horas na rua sob guarda dos agentes, à espera da detenção de um outro rapaz – a reportagem não teve acesso ao processo porque Vinícius é menor e tem sigilo protegido pela lei.
“Eu já tinha ido pra delegacia, mas foram procedimentos normais. Estava sem documento na rua, e eles me abordavam, viam que era limpo e liberava. Já fui diversas vezes abordado, diversas vezes humilhado, porque eles xingam, né, diversas vezes agredido, mas nunca tinha sido algemado na minha vida”, disse.
Na delegacia da Lapa, Vinícius falou que não sabia de quem era a droga. “Como é que eu vou afirmar uma coisa que eu não vi?”, disse. Decidiu falar a verdade: “o senhor que viu ele [um outro suspeito] correndo, então o senhor pode falar pro delegado que a droga é dele”.
Diante da recusa, Vinícius foi fichado e alojado no “porquinho”, sala de aproximadamente três metros quadrados, sem iluminação nem água, onde um buraco de concreto no chão é usado como vaso sanitário. De cueca, os detentos pensavam formas de vencer o frio e os bichos. “Tinha muita barata lá. Tinha um rato que, sem brincadeira, era do tamanho do meu chinelo!”, disse o rapaz, apontando para as sandálias de número 44.
Depois de mais de seis horas, Vinicius foi encaminhado à Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente onde recebeu orientação dos colegas de cela sobre as regras de convivência do Degase, para onde iria na manhã seguinte. “Eles explicaram como falar com os agentes. Se você fizer tal coisa é arriscado, se responder de tal jeito, é capaz de ser agredido”.
A primeira audiência, em um domingo, foi marcada pelo silêncio e falta de informação. Vinícius foi alojado temporariamente no Centro de Socioeducação Gelso de Carvalho, o Cense-GCA. Lá, se deparou com uma cela abarrotada, com mais de 15 jovens que tinham de se virar para caber em sete beliches de concreto. A porta tinha apenas uma pequena janela retangular cortada por duas grades. Os internos mais antigos, conta, deitavam em colchonetes azuis e finos, enquanto os novatos ficavam no chão. Um balcão de cimento funcionava como armário para itens de higiene, onde cada um depositava os produtos levados por familiares durante a visita.
Às seis da manhã, os internos formavam uma fila indiana e eram preparados para a contagem. A água, dividida em dois galões de cinco litros, acabava rápido por conta do calor causado pela superlotação. Para tomar banho, outro problema. “Era um minuto. Você entrava, se molhava, passava o sabão e saía. Ficava um minuto certinho, e aí chamavam: ‘acabou o banho’. Tem que voltar pro alojamento. E nem sabonete eles davam”, lembra.
‘Eu sou a mesma pessoa de quando entrei, só que com um pouco mais de ódio do sistema’.
Foi menos de 48 horas até retornar ao Fórum. Na segunda-feira à tarde, Vinícius chegou à nova audiência e, dessa vez, conseguiu driblar o silêncio e apontar as contradições dos acusadores. Os agentes do Lapa Presente apresentaram versões divergentes quanto às circunstâncias da apreensão. “Um deles disse que me viu correr, o outro que não me viu correndo e nem com a droga. Também falou que joguei a droga no armário, mas na delegacia ele tinha dito que encontrou na minha porta.”
Ele disse que ainda indicou à juíza evidências omitidas. “Eu disse a ela que se ele tava afirmando que a droga era minha, ele poderia muito bem mostrar a filmagem, porque ele tava com a câmera na mão. Mas ele falou que a câmera ficou com outro agente, que não sabe aonde foi parar, que tava escuro, alegou isso aí”, contou.
Vinícius conseguiu apresentar a Carteira de Trabalho para comprovar que tinha emprego. Não adiantou. A juíza afirmou que não havia evidências para comprovar a inocência e o sentenciou à liberdade assistida. O jovem precisaria comparecer quinzenalmente a um dos Centros de Referência Especializado de Assistência Social, os Creas, para conversar com assistentes sociais e psicólogos e comprovar que está estudando ou trabalhando.
“Ela faz umas perguntas, se você sentiu o impacto [do ato infracional e da detenção], como tá agora, se quer cometer de novo”, ele explicou. “Mas na verdade eu não cometi, né?”
De volta ao trabalho, Vinícius procurou a assistente social, na expectativa de que a empresa pudesse reforçar o coro em prol de sua inocência. Contudo, a profissional o orientou a não comentar sobre a prisão para evitar o julgamento dos colegas. Apreensiva, a família se mudou da casa para uma ocupação, também no centro do Rio. A troca de CEP, no entanto, não o protegeu das falas hostis dos agentes do Lapa Presente. “Eu estava passando de triciclo, e eles começaram a gritar ‘já saiu? Já saiu, marginal?”, contou. Vinícius denunciou os agentes à Polícia Civil, mas o medo de se tornar alvo falou mais alto, e decidiu retirar a queixa.
Ele só terminou de cumprir sua medida socioeducativa em junho deste ano. “Basicamente não mudei nada”, diz Vinícius. “Eu sou a mesma pessoa de quando entrei, só que com um pouco mais de ódio do sistema”, diz o jovem, que hoje trabalha como camelô. Quando não está trabalhando, o adolescente cola na São Martinho para jogar futebol e tomar banho. É um dos poucos lugares em que sente seguro. Ali se permite conversar, tocar cuíca, sorrir e sonhar. Apesar de estar três anos atrasado na escola, ele já sabe o que quer estudar na faculdade: Direito — o criminal.
‘Não é socioeducação, é cadeia!’
Fernando ficou oito meses com uma bala encravada no ombro.
Na época do Carnaval, Fernando* costuma ser visto em meio aos carros alegóricos de uma escola de samba mirim. Pai de uma menina, o jovem de 21 anos concilia as tarefas no barracão com a jornada de trabalho em um depósito de gás. Cinco anos depois de passar pelo Degase, ele ainda se lembra da experiência que marcou sua vida.
Nascido e criado em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Fernando disse estar na companhia de um adulto quando foi apreendido. Os dois tentavam fugir após roubar um carro e, durante a perseguição, o garoto acabou atingido no ombro. Por ser sua primeira passagem pelo sistema, havia expectativa por uma punição mais leve: a liberdade assistida. Contudo, a sentença determinou internação provisória. Depois de 45 dias na unidade provisória, a justiça o condenou a seis meses de internação no Centro de Atendimento Intensivo, o CAI Baixada, unidade de regime fechado no município de Belford Roxo.
O ECA determina que um jovem só pode ser privado de liberdade se cometer atos infracionais que representem “grave ameaça ou violência à pessoa” ou em casos de reincidência. Para os demais delitos, há cinco alternativas: advertência, reparação do dano, prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida – todas elas de regime aberto – e ainda a semiliberdade. Mas os números indicam que a internação tem sido a pena favorita do Judiciário.
Segundo um relatório do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Rio de Janeiro, em 2011, o Degase tinha 900 internos nas unidades provisórias, de regime fechado e de semiliberdade. Em 2017, os centros superlotados contabilizavam 2075 jovens, a maioria apreendida por roubo e tráfico de drogas. Deste total, cerca de 3% respondiam por homicídio – crime considerado grave – o que representava aproximadamente 60 jovens, quantidade insuficiente para encher uma unidade de internação.
Durante os oito meses em que esteve internado, Fernando permaneceu com a bala alojada no corpo. Apesar da limitação que o projétil causava no movimento do braço, o impedindo de dormir ou mesmo vestir o uniforme e pentear o cabelo sozinho, o pedido por liberação para fazer uma cirurgia foi negado. “Conforme eu mexia o braço, a bala se movimentava, poderia agravar. A médica fazia curativo, falou para eu não fazer esforço. Ela queria que a minha liberdade saísse em três meses, fez o relatório e mandou para a juíza para que eu pudesse fazer a operação. Só que a juíza não liberou”.
Fernando ficou alojado em um setor individual que, segundo ele, reunia os adolescentes interessados em mudar de vida. “Na ala coletiva também tem quem quer sair da vida do crime, mas a maioria que fica lá pensa em voltar”. A tipificação não é formalizada pelo Degase, mas é comum em muitas unidades, como aponta o relatório do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. Os funcionários tentam evitar que os veteranos, que já tiveram várias passagens pelo Degase, influenciem os novatos. Além das divisões por facção, acusados de homicídio e estupro e adolescentes homoafetivos costumam ficar em alas separadas.
Embora fosse chamado de individual, o alojamento onde Fernando ficou já enfrentava superlotação naquela época. Em 2018, a unidade, com capacidade para 120 pessoas, abrigava 281 adolescentes. “Eram no mínimo quatro, mas teve uma época que cheguei a ficar com mais sete [no alojamento]. Um colchão em cada cama, dois colchões no chão. Já ficaram cinco colchões no chão”, lembra.
Nem a debilidade física nem o tipo de alojamento o privaram da violência. De acordo com o jovem, um agente que tinha desavenças com seu pai – então guarda municipal – o agrediu fisicamente durante quatro meses. “Quando ele me viu, a primeira coisa que lembrou foi do meu pai. Aí tudo o que ele queria fazer para se vingar, ele fazia”, conta. Fernando lembra que durante as manhãs, a cada três dias, ele era retirado de seu alojamento para receber o castigo. “Eu acordava todo dia cedo por causa do plantão dele. Ele me tirava de dentro do alojamento só para me bater.”
O medo o impediu de denunciar os abusos, até que, em uma visita, o pai percebeu os hematomas e o pressionou a explicar o que havia acontecido. A direção da unidade conversou sobre o caso e decidiu pelo afastamento do funcionário, como nos confirmou um socioeducador que trabalha no local. “Tirando esse agente, com os outros funcionários eu sempre preferi levar na boa, para não acontecer justamente o que rolou com esse”.
Enquanto Fernando esteve internado, o CAI-Baixada foi palco de duas rebeliões de internos. Na primeira delas, os adolescentes questionavam uma punição coletiva que suspendeu o uso de rádio e TV. Na segunda, havia um boato sobre possibilidade de fuga da unidade e, por isso, o rapaz chegou a trancar o alojamento em que estava para evitar que os colegas participassem do motim. Fernando teve medo de represálias dos agentes caso o plano desse errado. Aqueles que conseguissem fugir ainda corriam o risco de serem pegos por integrantes da facção Terceiro Comando Puro (TCP), que atuam no bairro. Os funcionários, segundo ele, aprovaram a atitude, e passaram a tratá-lo como exemplo para os demais. “Um ou outro tem a cabeça avoada e já quer estourar uma rebelião e tudo mais… Então, na verdade, é uma cadeia. Todo mundo sabe, só que usam outro nome para passar como se fosse uma vaselina. Não tem essa que é socioeducativo. O que acontece lá é tu apanhar, tá entendendo?”
‘Na verdade, é uma cadeia. Todo mundo sabe, só que usam outro nome para passar como se fosse uma vaselina’.
Atrás das grades, a loucura era iminente, lembra Fernando. Com o “psicológico abalado”, como ele próprio define, o jovem começou a fazer o máximo de atividades que conseguia. “Na cadeia, o que você tiver que fazer para sair do alojamento, nem que seja varrer o corredor, você vai fazer. Então, eu entrei para escola, para o teatro, entrei para tudo. Fiz curso de pintura, até um curso lá de pipa”.
Ele foi apresentado à magia dos bastidores do carnaval pelo socioeducador Jefferson Rocha, há quase 20 anos no CAI-Baixada, que com recursos próprios adquiriu os equipamentos e o figurino a que os jovens têm acesso nas aulas. “Não acho que o adolescente precisa só de punição, pois quem trouxe o garoto já o fez”, diz Rocha. “Temos que fazer com que ele volte para a escola, que aprenda a ler. Tem meninos de 17, 18 anos que não sabem [ler], que nunca foram ao teatro, a uma biblioteca… Queremos que se interessem por algo do que temos aqui — música, serigrafia –, para que enxerguem outras oportunidades e voltem ao convívio com uma cabeça melhor”.
Àquela época, o CAI-Baixada participava de projetos da ONG Rio Solidário, cuja presidente de honra é a esposa do ex-governador Sérgio Cabral, Adriana Ancelmo. Segundo funcionários da unidade, a ex-primeira-dama interveio na destinação de verbas para reformas que garantiram a construção do pequeno auditório. De lá pra cá, muita coisa mudou em relação à oferta de atividades no centro de Belford Roxo. Em 2018, nenhuma ONG de educação profissional realizava ações na unidade. Apenas grupos independentes ministravam aulas de artes marciais e outras atividades lúdicas.
Embora pequenas, as instalações na escola que integra o CAI-Baixada revelam o zelo dos professores e diretores – o que, como vimos, depende mais de ações individuais que das políticas de estado. Trabalhos feitos pelos alunos sobre temas como respeito à identidade, violência de gênero e consciência racial decoravam o corredor e as salas estreitas. Foi ali que Fernando concluiu o equivalente ao primeiro ano do Ensino Médio e cursou parte do segundo ano. Ao contrário do ensino regular, no qual cada série preenche o ano letivo, no sistema socioeducativo os conteúdos são distribuídos em módulos de poucos meses, e as provas e trabalhos em aula são mais frequentes, numa tentativa de dar conta da alta rotatividade de internos.
Entre os jovens apreendidos, estudar é um privilégio. Quase 90% dos internos em regime provisório ou fechado não estudam, principalmente por causa da falta de vagas e da dificuldade de deslocamento, especialmente nas unidades superlotadas. O direito à educação, previsto no ECA, esbarra em poucas e pequenas salas e num efetivo insuficiente de agentes para a quantidade de adolescentes.
“Gostaria de atender mais alunos, trabalhar com um grupo bem grande, porém por mais que eles me respeitem, pode rolar um conflito que não vou saber controlar, então eu estaria sendo irresponsável com a segurança. Independente de onde eles estejam, são adolescentes, se desentendem, brigam. E aqui os nervos já são mais aflorados, dadas as condições”, desabafa uma bibliotecária de uma das unidades fluminenses, que pediu para não ser identificada por receio de represálias do governo.
Fernando deixou a unidade há pouco mais de cinco anos. A pena inicial, de seis meses, foi concluída após oito meses e 23 dias de internação, somando o período antes da sentença. Segundo o jovem, o relatório enviado pela unidade ficou cerca de um mês parado na justiça. Em liberdade e contrariando as estatísticas, ele conseguiu concluir os estudos à distância. Conseguir trabalho, porém, ainda é um problema.
“Tem praticamente seis anos que eu saí de lá e na maior parte desse tempo não consegui um trabalho de carteira assinada. Faz poucos meses que um amigo arrumou pra mim num depósito de gás”, analisa o jovem, que mora em Santa Cruz, um dos subúrbios mais distantes do centro da cidade do Rio, na zona oeste, com a esposa e a filha.
Hoje, Fernando acha que seu período em privação de liberdade influenciou sua formação como homem. Ele teve sorte. A aproximação com um agente socioeducador ligado ao teatro lhe fez pensar em novas possibilidades: trabalhar na escola de samba. “Quando você aprende a depender do outro, vê que precisa daquela pessoa, que o mundo não gira ao seu redor, percebe que dinheiro não é tudo. Se não receber visita, não vai ter um sabonete, uma roupa limpa. Antes eu não tinha tanta humildade que eu tenho hoje, não sabia o que é ser homem. Eu era um garoto”.
‘Eles mesmos criam os pitbulls’
DG saiu e não voltou mais. Ele não acreditou que o sistema melhoraria sua vida.
Pelas vielas do Jacarezinho, favela na zona norte do Rio, é possível ouvir de longe a chegada de DG*. O barulho do escapamento da moto acompanha o jovem de 16 anos como uma sombra. O veículo é uma de suas maiores paixões, ainda mais se for para “dar rolé com as novinha”.
Para a cria do ‘Jaca’, o procedimento da polícia seguiu o padrão – não aquele estabelecido pelo ECA, claro. Na cidade do Rio, os jovens apreendidos devem ser encaminhados primeiro à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente mais próxima. Num prazo de 24 horas, ele deve ser transferido para uma unidade de triagem, onde pode passar a noite, até ser levado ao Núcleo de Audiência de Apresentação da Defensoria Pública. Na Defensoria, profissionais da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos e um defensor público devem entrevistá-lo, antes que ele seja apresentado à Vara da Infância, da Juventude e do Idoso.
Detido em flagrante por policiais da Delegacia de Combate às Drogas após roubar uma moto em outubro de 2018, DG conta que apanhou desde a apreensão até a transferência para uma unidade de internação, em um longo percurso de direitos ignorados. Ele foi mandado primeiro para a 23º delegacia regular do bairro do Méier, que alegou não operar com detenções em flagrante. De lá, o garoto foi levado à Cidade da Polícia, sede da Polícia Civil no Rio, onde passou 48 horas sem comer e na companhia de presos com mais de 18 anos – o que também é proibido pelo ECA. Só depois disso é que DG foi encaminhado à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente do bairro da Lapa. Não que a sua situação tenha mudado muito ao chegar na especializada. Lá, lembra, passou mais dois dias sem comida. “Os caras não dão nada, não. Só fui comer quando cheguei no Degase”, referindo-se ao anexo do departamento, onde dormiu após a maratona de quatro dias.
A audiência foi realizada no dia seguinte, no Fórum da Praça 15. O procedimento padrão prevê que o juiz avalie a denúncia feita pelo Ministério Público, ouça a Promotoria, a autoridade policial e o adolescente, a fim de decidir pela liberação ou não do jovem apreendido. Sem ter falado com ninguém, DG permaneceu de cabeça baixa, ouvidos atentos e mãos algemadas. Quando questionado pela juíza sobre as acusações, confirmou o roubo. A sentença determinou a transferência do garoto para o Centro de Socioeducação Gelso de Carvalho, o Cense-GCA, antigo CTR, como o local ainda é chamando tanto pelos jovens que passaram por lá quanto pelos agentes que trabalham no local, e o agendamento de uma nova visita ao tribunal dias depois.
Os adolescentes podem permanecer no Cense-GCA por até 72 horas enquanto aguardam pela audiência. Caso o juiz decida pela internação provisória enquanto corre o processo, o jovem deve ser transferido ao Centro de Socioeducação Dom Bosco, também na Ilha do Governador, onde pode permanecer por no máximo 45 dias. Foi no Gelso de Carvalho que DG conversou com profissionais e entendeu o que significava o Degase. “A gente só falava com o psicólogo quando chegava. A assistente social que perguntava teu nome, contato e pá. Ela explicava também o que ia acontecer com nós e das sentença que tinha, liberdade assistida, semiaberto…”. O ECA determina diferentes sentenças de acordo com a gravidade do ato infracional ou a quantidade de vezes em que o adolescente já passou pelo sistema. No caso de DG, a juíza determinou que ele ficasse internado seis meses em regime de semiliberdade, situação em que os jovens passam a noite nas unidades de internação e saem para ir à escola durante o dia e retornam para dormir no centro.
No Degase, como em uma penitenciária comum, os alojamentos são divididos em alas de acordo com as facções ligadas ao tráfico de drogas ou às regiões da cidade onde vivem. Por ser do Jacarezinho, DG ficou alojado numa ala do Comando Vermelho, onde encontrou muitos garotos negros como ele. As estatísticas apontam que as semelhanças não são coincidência. Mais de 70% dos jovens internos são negros e 81% tem entre 16 e 18 anos.
‘Se alguém gritava de uma cela, todo mundo apanhava’.
DG se apresentou e recebeu instruções do adolescente há mais tempo na ala. “Lá tem o mais velho da cela, ele já te orienta sobre o esquema da cadeia. Não podia falar vacilação, não podia xingar e mandar sujeito homem tomar no cu. Na hora de usar o banheiro, tinha que colocar o chinelo na tampa do vaso e no banho não podia passar o sabonete nas partes íntimas”. DG explica que as regras são seguidas à risca para, segundo o adolescente que o orientou, manter a harmonia dentro da cadeia. “Com os amigos era tranquilo, geral era abraçado. Era todo mundo família”. A família do Comando Vermelho, facção que o acolheu na prisão.
Da família de sangue, tudo o que DG recebeu no período da detenção foram abraços bem rápidos. Segundo o jovem, os agentes faziam questão de encurtar as visitas, já tão breves. A unidade permite visitas apenas uma vez por semana. “Eles falavam que eram 10 minutos de visita, mas chegava lá e eu dava só um abraço na minha mãe, ela começava a chorar, e os cara já separava e mandava embora. Era isso com todas as mães”, lembra.
Para a violência, ao contrário, havia carta branca. “Qualquer coisinha, eles [os agentes] batiam. Não podia falar, conversar. Se alguém gritava de uma cela, todo mundo apanhava. Tipo, um faz todo mundo apanha, sabe…”
Os agentes não eram os únicos a maltratar os internos. “Com os funcionários a gente não falava. Não tinha nem bom dia e nem boa tarde, os cara só chegava e amassava nós, só vinham pra bater na gente. Os único que nós conversava um pouco era as assistentes sociais e os cara da limpeza”, conta.
De dentro da ala, que aprenderam a chamar de cela, os adolescentes namoravam a quadra esportiva à frente, o espaço mais silencioso da unidade. Não havia atividades de lazer nem banho de sol. “A gente não saía pra nada”. Por ser uma unidade de passagem, o Cense-GCA não oferece aulas e outras atividades. Contudo, os três dias de estadia máxima se multiplicam e viram 15, 20, 25. Foi o caso de DG. A segunda audiência ocorreu cerca de três semanas após sua chegada ao Degase. A justiça direcionou DG ao regime semiaberto, em um dos Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente, o Criaad. Lá, o interno cumpre atividades de segunda a sexta e pode visitar a família aos finais de semana, se autorizado. “Era mais tranquilo. A comida era melhor, as celas ficavam abertas, e a gente podia conversar com todo mundo da cadeia. Tinha futebol e igreja também”.
No primeiro final de semana em que voltou para casa, DG decidiu não retornar ao local. Ele não acredita que o sistema melhoraria sua vida. “Os caras falam que é pra educar, mas eu só desci mais revoltado. Eles mesmo cria os pitbull. Efetivo? Só me deixou com mais ódio na mente, só me piorou”. DG passou nove meses foragido. Pouco antes de publicarmos essa reportagem, descobrimos que ele voltou a ser apreendido.