Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Neste capítulo, Cícero César homenageia a arte gaúcha, sobretudo o trabalho do cantor e compositor Marco Aurélio Vasconcellos.
Caro Washington, de vez em quando me vem à memória um poema de Mário Quintana escrito em celebração dos 65 anos de Érico Veríssimo. Chama-se “O Tempo e o Vento”, não por coincidência, e tem versos assim: “Mas havia um arroio correndo entre os dedos buliçosos dos pés / E pássaros pousados na pauta dos fios do telégrafo”
Eu os leio ainda hoje. Ou melhor, eu os vejo ainda hoje, pois eles são exemplos fortes de como a poesia, por intermédio da combinação certa de certas palavras é capaz de suscitar imagens. No caso, quase quadros, pois vejo os pés de alguém (do-ser-que-se-ama) delicadamente pousados nas águas do rio e também vejo os passarinhos formando o desenho de uma anotação musical em uma partitura. Aliás, também gosto muito da escolha do adjetivo buliçoso, que tão bem combina com o verso.
Enfim, é tudo muito bonito, talvez até muito pensado e refletido, mas sem a mão pesada. É como o voo de um pássaro.
Graças ao Bem Blogado, ao ouvir algumas pérolas do cancioneiro de Marcos Aurélio de Vasconcellos, fui tomado por um deslumbre parecido, só que agora com a música popular ou nativa do Rio Grande do Sul.
A indumentária, o gestual, o tipo físico e a voz de tenor do intérprete me transportaram para o universo internacional dos Pampas – região que pertence ao Brasil, mas também à Argentina e ao Uruguai.
Este homem de oitenta anos, na canção “O Tempo e o Vento”, é a voz de um mundo que não se rende nem se renderá, que se reconhece altivo e forte. É o mundo do tempo, cronológico e linear, que passa, e do vento, circular.
E o que dizer do lirismo de “Cordas de espinho”? (dele e de Luiz Coronel). É uma beleza de milonga! O vídeo do YouTube não me deixa mentir: o cenário é tão deslumbrante quanto a interpretação de Marcos Aurélio de Vasconcelos. A letra nos remete à paisagem da região bem como a seus costumes. É uma canção caliente, passional, de encontro de amantes de sangue quente.
Quase ia me esquecendo do significado de “cordas de espinho”. Eu acho que é o que a gente chama de arame farpado. Criei na cabeça uma teoria inteira sobre isso. O amor cerca, fere, faz sangrar coisa e tal. Mas estou certo de que este é o significado correto.
“Sanga do Pedro Lira” me tirou dos eixos (Marco Aurélio Vasconcellos e Demétrio Xavier). A singeleza dos versos revela um baita tema sobre as coisas que permanecem. É incrível perceber que a própria estrutura dos versos reforça a ideia central, em suas rimas com “ira” e “ão”.
Além de engenhosas, as combinações dos versos revelaram um sentido, digamos, transcendental. Pelo menos, foi assim que entendi a declaração do letrista, o Demétrio Xavier, que parece ter ser espantado um pouco com a força da sua composição.
É que já não era mais um poema, mas uma canção: algumas palavras ganham uma expressão surpreendente quando cantadas, sentidos para os quais não tínhamos nos atentado.
É claro que a melodia e a performance de Marco Aurélio Vasconcellos têm um peso decisivo para que isso ocorresse.
Demétrio Xavier, aliás, nos dá uma grande aula sobre os pormenores da canção, sem a armadilha da literatice em que alguns estudiosos por vezes caem. Vê-se que ele é professor, mas não quer bancar o sabichão.
Ele esclarece que foi um velho gaúcho, um sábio, quem lhe deu o mote, quando falou que a serração nunca se dissipa naquele riachinho do Pedro Lira (estou fazendo uma aproximação aqui. “Sanga” não é propriamente um riachinho. O vocabulário sulista tem timbres próprios). Isso é ou não é um grande apreço pelo que é popular e sapiente?
Foi o paulista José Miguel Wisnik, um dos intelectuais que mais nos fazem entender a potência da canção brasileira, esta forma de saber alegre a qual estamos familiarizados, quem criou a feliz imagem da “rede de recados”, da qual me aproprio aqui para comentar o que ocorreu nesta canção: os assuntos se comunicam. Um sábio passa um recado para um letrista, que admirado sobre o que ouviu, escreve um poema em quadrinhas; o poema chega às mãos de um hábil melodista, que lhe dá régua e compasso, isto é, voz.
São idas e vindas, à espera de nossa escuta criativa.
Para mim, depois de ter escutado a história, não é coincidência nenhuma o fato da canção ter sido premiada em um festival de música nativa no Rio Grande do Sul.
Afinal, tanto a canção quanto seu intérprete encarnam o que deve permanecer de tal espírito – o que deve permanecer para nos transformar. Uso “deve” mais no sentido de uma obrigação moral do que de um prognóstico.
É por essas e por outras que vale a pena estar vivo, compondo canções e as ouvindo.
Despeço-me com um versinho:
Quero-quero, tenho tudo que é belo!
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.
Vejam abaixo Marco Aurélio Vasconcellos e Demétrio Xavier em “Cordas de Espinho”, A sanga de Pedro Lira” e “O Tempo e o Vento”.