Câmara acelera votação de projeto de lei, mas Supremo ainda vai decidir sobre direitos dos povos originários sobre territórios
Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Protesto em Brasília contra o marco temporal: ameaça a terras indígenas já demarcadas e em demarcação ( Foto: Tiago Miotto / Cimi – 29/09/2023)
Projeto de lei da Câmara vai estabelecer o marco temporal para terras indígenas. Supremo vai deliberar sobre marco temporal. Organizações em defesa dos povos indígenas protestam contra o marco temporal. Há, pelo menos, seis anos, o termo “marco temporal” passou a fazer parte do dicionário político brasileiro porque não é pouca coisa o que está em jogo: são mais de 300 terras indígenas que podem (ou nâo) ser passíveis de demarcação a depender da legislação em discussão.
Mas, afinal, o que é o marco temporal? No caso dos territórios indígenas, os defensores do marco temporal – principalmente proprietários rurais e seus aliados – apoiam a tese jurídica de que os povos indígenas só possuem direito de reivindicar determinado território caso eles já o ocupassem em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da atual Constituição do Brasil. Esta data seria o marco de tempo para os direitos indígenas sobre as terras que não valeriam para o passado.
No entendimento dos povos indígenas e seus aliados, a tese jurídica do marco temporal desrespeita a Constituição que reconhece aos indígenas, em seu artigo 231, “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Assim, os povos indígenas teriam direito aos territórios, onde tinham raízes mesmo antes de 1988. Como, ao longo da história do Brasil, os indígenas foram expulsos de muitas terras, eles ainda teriam o direito a demarcação de territórios em que o estado reconhecesse sua ocupação tradicional pelos povos originários.
Como há uma questão de caráter constitucional, o debate foi parar no Supremo, onde é alvo de discussão desde 2019. Como os fazendeiros nunca se conformaram com este reconhecimentos dos direitos indígenas, o deputado e líder ruralista Homero Pereira, que chegou a presidir a Frente Parlamentar do Agronegócio, apresentou, em 2007, projeto de lei com a tese do marco temporal, suprimindo direitos dos povos indígenas. O PL 490/2007 vem sendo discutido na Câmara desde então e mesmo sem a participação do autor – o deputado Homero morreu em 2013 – avança com apoio da bancada ruralista e a oposição de parlamentares aliados dos indígenas.
O marco temporal voltou aos holofotes no governo de Jair Bolsonaro, presidente que prometeu – e cumpriu – não demarcar nem um centímetro de terras indígenas. Em junho de 2021, os governistas aprovaram parecer favorável ao projeto na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara; em agosto, o Supremo começou a julgar o caso sobre terras indígenas em Santa Catarina em que está em discussão a tese jurídica do marco temporal. Nas duas instâncias de poder, o tema não avançou: a Câmara não colocou em votação e o STF suspendeu o julgamento após dois votos – do relator Edson Fachin, contra o marco temporal, e do ministro Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, a favor – e um pedido de vistas.
O marco temporal voltou aos holofotes com o anúncio da presidente do STF, Rosa Weber, de que a votação sobre o caso de Santa Catarina seria retomada em junho. O Supremo já havia decidido que esse julgamento seria de “repercussão geral”, ou seja, balizaria todas as outra decisões do Judiciário sobre a tese do marco temporal. Os ruralistas, então, trataram de apressar a tramitação do PL 490/2007 e aprovaram requerimento de urgência para a votação – ele pode ser votado pelo Plenário nesta terça (30/05).
Para os indígenas e seus aliados, o projeto é inconstitucional. “O STF vai definir sobre a interpretação do artigo 231 e se existe marco temporal na Constituição. O que querem, ao nosso ver, é pressionar o STF para fixar um entendimento favorável ao PL 490. São poderes independentes, o Congresso pode até aprovar a lei que regula a tese, mas quem vai dar a última palavra vai ser a Suprema Corte”, afirmou o advogado Rafael Modesto, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário. “O marco temporal é genocídio legislado e um atentado ao direito dos povos indígenas”, protestou a ministra Sônia Guajajara.
A bancada ruralista decidiu acelerar a votação como resposta ao Supremo. Mas, mesmo com a aprovação na Câmara, o PL 490/2007, ainda precisa ser analisado e votado no Senado, antes de ir à sanção do presidente Lula, que pode exercer seu poder de veto.
As terras dos Xokleng em Santa Catarina
No centro do debate no STF, está a saga judicial do povo Xokleng na disputa pela Terra Indígena Ibirama Laklaño, habitada também por outros dois povos, os Kaingang e os Guarani — na região do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, — que está sendo pleiteadas pelo governo do estado e por proprietários rurais.
A Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ foi demarcada em 1996 e, em 2003, mais que triplicou de tamanho, passando de 15 mil para 37 mil hectares – são esses 22 mil hectares, área parcialmente ocupada por plantações de fumo, que é alvo da ação judicial. O governo estadual alega que a área era pública e, na sua maior parte, foi vendida a proprietários rurais no século 19. O governo catarinense também disputa com os Xokleng 3.800 hectares onde há sobreposição entre a terra indígena e reservas biológicas estaduais.
Em 2013, a Justiça Federal no estado aplicou a tese do marco temporal ao conceder ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina a reintegração de posse de uma área que é parte da Reserva Biológica do Sassafrás, onde fica parte da Terra Indígena Ibirama LaKlãnõ. A Funai recorreu ao STF, alegando exatamente que a decisão, com base no marco temporal, era inconstitucional. É este o julgamento que a ministra Rosa Weber prometeu concluir a partir de 7 de junho.
Quando o julgamento começou em 2021, o procurador-geral da República, Augusto Aras, defendeu o direito da etnia Xokleng sobre a área. “É preciso que se diga com clareza: haverá casos em que, mesmo não havendo posse por parte dos índios em 5 de outubro de 1988, a terra poderá ser considerada como tradicionalmente ocupada por eles”, disse Aras. Relator do recurso da Funai, o ministro Edson Fachin também defendeu o direito dos indígenas. “A proteção constitucional aos ‘direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam’ independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 e da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição”, disse Fachin.
O PL da discórdia
Na noite de quarta-feira, o Plenário da Câmara aprovou – por 324 votos a favor e 131 contra – o requerimento de urgência para o projeto de lei do marco temporal na demarcação de terras indígenas, restringindo a demarcação de terras indígenas àquelas já tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
O requerimento foi apresentado pelo deputado bolsonarista Zé Trovão e teve apoio do relator do PL, Arthur Maia. “É um projeto audacioso, que acabaria com a guerra entre os indígenas e os produtores, e faz justiça àqueles que produzem e levam sustento”, disse Trovão. “É inaceitável que ainda prevaleça a insegurança jurídica e que pessoas de má-fé se utilizem de autodeclarações como indígena para tomar de maneira espúria a propriedade alheia, constituída na forma da lei, de boa-fé e de acordo com o que estabelece a Constituição brasileira”, disse o relator.
Segundo o texto do substitutivo apresentado por Maia, a interrupção da posse indígena ocorrida antes do marco temporal, independentemente da causa, inviabiliza o reconhecimento da área como tradicionalmente ocupada. A exceção é para caso de conflito de posse no período. A proposta que vai à votação também proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas.
O substitutivo de Arthur Maia ainda flexibiliza o uso exclusivo de terras pelas comunidades e permite à União retomar áreas reservadas em caso de alterações de traços culturais da comunidade; possibilita contratos de cooperação entre índios e não índios para atividades econômicas; e permite contato com povos isolados “para intermediar ação estatal de utilidade pública”. Pelo texto do relator, o usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, a garimpagem, a lavra de riquezas minerais e “áreas cuja ocupação atenda a relevante interesse público da União”.