Médica e pesquisadora da Fiocruz defende o uso de máscara em ambientes fechados, elogia o passaporte vacinal e alerta: teremos novos picos da doença após o Réveillon e o Carnaval
Por PH de Noronha, compartilhado de Projeto Colabora
A covid-19 transformou a capixaba Margareth Dalcolmo, em uma celebridade nacional e uma médica de família virtual. Foto Mauro Pimentel/AFP
A covid-19 transformou a capixaba Margareth Maria Pretti Dalcolmo, até então uma ilustre desconhecida do grande público, em uma celebridade médica nacional, fazendo companhia a outros profissionais de saúde que saíram do anonimato para ganhar destaque na mídia como “especialistas” em epidemia – entre eles, o biólogo e virologista Atila Iamarino e a também bióloga Natalia Pasternak.
No auge da pandemia, era possível ver a carinha simpática da Drª Margareth nas telas da TV de três a quatro vezes numa única semana, dando explicações e orientações didáticas sobre o assunto mais grave do século 21. Sempre com muita informação científica relevante, transmitida com uma voz calma e serena. E, invariavelmente, com poucos sorrisos – porque, realmente, não dava para sorrir falando de contaminação por coronavírus, óbitos, intubações e risco de vida. No imaginário coletivo, a Drª Margareth Dalcolmo tornou-se a médica de família virtual de cada um de nós no enfrentamento ao vírus Sars-CoV-2.
Nascida no primeiro dia do signo de Câncer, na cidade de Colatina (120 mil habitantes, situada na região central do Espírito Santo), Margareth Dalcolmo tem 67 anos e é médica e pesquisadora da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz). Nesses 20 meses de pandemia, adquiriu uma impressionante quantidade de conhecimentos científicos sobre a covid-19. “Tive a curva de aprendizado mais intensa que jamais pensei que teria em toda a minha vida”. Nisso, inclui-se uma experiência pessoal dramática – logo no início da pandemia, no final de abril de 2020, ela foi internada com covid-19, sem saber ainda que doença era aquela e como tratá-la.
“Tive muito medo. Na cama do hospital, vivia a expectativa da chegada do momento em que começaria a faltar ar. Já havia perdido vários pacientes para aquela pneumonia viral grave atípica. Cheguei a tomar algumas providências: deixei procurações e desejos anotados, como se fosse um testamento.”
Em suas entrevistas, nunca poupou o público de notícias ruins. Margareth Dalcolmo não é daqueles médicos que ficam enrolando o paciente. Ela vai direto ao assunto. Vários foram seus alertas sobre os descaminhos das autoridades na forma de coordenar o ataque à doença, adotar medidas sociais restritivas e conduzir o processo de vacinação. Sempre com o respaldo da ciência, do bom senso e da sua experiência como pneumologista estudiosa da tuberculose (tema de sua tese de doutorado na Escola Paulista de Medicina), pesquisadora da Fiocruz e professora adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Hoje, Margareth está um pouco mais otimista. Saúda o avanço da vacinação no Brasil. Reconhece que a situação melhorou e que já dá para andarmos em áreas públicas abertas sem máscara. Diz que sabemos melhor como tratar os pacientes. E afirma que todas as vacinas usadas no Brasil provaram ser muito boas.
Obviamente, muitas coisas ainda inibem seu otimismo. Alerta que a chegada ao Brasil de alguma nova variante perigosa da covid-19 é uma possibilidade concreta. Reclama que as autoridades estão retirando as restrições antes da hora – e não aprenderam com a experiência da Europa, onde a abertura sem critérios é uma das causas da nova onda de covid-19. Defende, com firmeza, a adoção do passaporte vacinal e o uso de máscaras em ambientes fechados. Recomenda que a rede hospitalar se prepare para eventuais picos após o Réveillon e o Carnaval. E afirma, taxativamente, que o tratamento dos pacientes com sequelas da covid-19, que sofrem da Síndrome de Covid Longa (ou Síndrome de Pós-Covid) é o maior desafio da Medicina nos dias de hoje.
“O tratamento de milhares de pessoas com a Síndrome da Covid Longa, para permitir que elas possam ser reincorporadas à vida normal, exige serviços de reabilitação multidisciplinares, com médicos de várias especialidades. Essa doença é muito complexa…”
A seguir, algumas impressões e opiniões de Margareth Dalcolmo, fruto de uma rápida entrevista telefônica de pouco mais de meia hora na semana passada. Trinta e poucos minutos pode parecer pouco para tantos assuntos, mas quando se trata da Drª Dalcolmo, é tempo até demais. Ela é profundamente objetiva e não desperdiça palavras: tudo o que diz, é muito relevante.
O momento atual
“Está, sem dúvida, melhor. Houve uma diminuição da transmissão comunitária, por força da cobertura vacinal completa. Esse era o grande objetivo da vacinação no primeiro momento: reduzir o número de hospitalizações, de casos graves e de mortes. Começamos tarde e não imprimimos um ritmo adequado de vacinação. Poderíamos ter vacinado 2 milhões de pessoas por dia, no mínimo, e não o fizemos. Primeiro, porque não tinha vacina; segundo, porque o Plano Nacional de Imunização (PNI) entrou muito desorganizado no processo desde o início – sem uma coordenação centralizada, harmônica e adequadamente ligada à comunidade acadêmica e à sociedade civil, contribuindo para gerar muita desinformação. No entanto, passados quase 10 meses de vacinação, estamos conseguindo imprimir um ritmo perto do desejável, vacinando mais de 1 milhão por dia. Hoje nós temos cerca de 60% da população vacinada com 2 doses, mas com uma heterogeneidade muito grande. Temos locais como Rio, São Paulo e o Sudeste numa situação favorável, enquanto na região Sul aumentam os casos. Ainda não atingimos uma taxa de cobertura vacinal que nos dê conforto para as liberações.”
As máscaras
“Considero uma perda de energia essa discussão de ‘bota a máscara, tira a máscara’. Máscara é uma barreira mecânica absolutamente eficiente contra o Sars-CoV-2, que hoje sabemos que é um vírus que tem transmissão ambiental. Caíram por terra aqueles primeiros momentos de medo, em que nós ficávamos limpando obsessivamente superfícies e sacolinhas de supermercado. Já se demonstrou que isso é pouco útil. Fundamental é o controle do ambiente. Isso quer dizer, em outras palavras, que, num ambiente fechado, a máscara é uma arma muito importante e muito poderosa. Isso se mostra verdadeiro, inclusive, pela redução de outras viroses respiratórias, o que ocorreu não apenas no Brasil, mas em outros lugares do mundo. Tudo porque as pessoas estavam de máscaras. Eu considero a liberação de máscaras em ambientes fechados um grande equívoco. Já estamos liberados de usar máscaras quando vamos caminhar na praia ou no Jardim Botânico, ou ainda fazer exercícios num parque aberto. Em um ambiente de atmosfera você pode ficar sem máscara, não há dúvida. Porém, em ambientes fechados, acho precoce e equivocado. Academias de ginástica, por exemplo, são ambientes fechados, em sua grande maioria – não tem por que liberar.”
Eventos em locais abertos
“Cada caso é um caso. Um estádio de futebol, se estiver todo mundo emboladinho, colado um no outro, é um risco. E quanto mais você grita, maior o risco. Para liberar um estádio de futebol, eu acho que teria que haver um controle evidente de que todas as pessoas que forem estão vacinadas. Qualquer evento em ambiente aberto tem um risco assumido. Qual é o risco que nós podemos assumir? Se todo mundo estiver vacinado, deve dar para ficar sem máscara. Mas quem não estiver vacinado, tem que ficar de máscara.”
Passaporte vacinal
“Estou convencida de que a exigência do passaporte vacinal é uma medida sanitária correta, adequada e oportuna – essa é a minha posição. Não tem essa discussão de que ‘isso é arbitrário’. Arbitrário é contaminar os outros quando estamos no meio de uma pandemia. A solicitação do passaporte vacinal é defensável e importante.”
Réveillon e Carnaval
“Acho que muita gente não vai ao réveillon de Copacabana, vai pensar duas vezes antes de ir, porque as pessoas ainda estão preocupadas. Dependendo do grau de aglomeração que haja, é um risco. A pergunta que se coloca é: o quanto calculado e mensurável é esse risco? Nós não temos como saber, é um risco relativo. É ao ar livre, mas será uma noite quente. Em geral, não tem muito vento, mas obviamente ninguém vai ficar de máscara… É um risco alto? Não, não é um risco alto, mas é um risco. Pode ter, por exemplo, uma nova cepa circulando. A gente espera que dessas aglomerações surjam alguns picos epidêmicos, talvez de porte pequeno, não dá para prever ao certo o tamanho da coisa. Mas as redes hospitalares têm que estar preparadas para uma eventual demanda maior depois do Réveillon e também do Carnaval – vamos, com certeza, ter um Carnaval convivendo com a covid-19, e podemos ter novos picos depois.”
Divisor de águas
“A covid-19 não é um fenômeno que vai acabar. Ela dividiu as nossas vidas entre o antes e o depois, a verdade é essa. Então, o uso de máscaras em transporte coletivo, como o avião, não deve mais acabar. Acredito que, pelo menos nos próximos dois anos, não vai se embarcar num avião comercial sem o uso de máscara e comprovação de passaporte sanitário. Acho muito difícil que qualquer companhia aérea, por mais crise econômica que seja, libere isso. Até porque alguns passageiros não vão aceitar, podem cancelar passagens, porque um número grande de pessoas está com muita consciência. Temos que olhar a sabedoria oriental: eles embarcam de máscara em aviões há muitos anos, com medo de viroses respiratórias. Até nos Estados Unidos temos esse hábito. Todo o sistema de respiração interna das aeronaves foi revisto, foi colocado o filtro Hepa , mas isso não resolve tudo. A manutenção de todo mundo de máscara nos aviões é sem dúvida uma medida bastante correta.”
O aprendizado sobre a doença
“A doença chegou até nós como uma pneumonia típica, no final do Carnaval de 2020. Os primeiros pacientes que internamos tinham quadro de pneumonia viral grave. Aprendemos rapidamente, foi a curva de aprendizado mais intensa que eu jamais pensei que teria em toda a minha vida: não era uma pneumonia típica. A covid-19 é uma doença sistêmica, que se caracteriza por um processo de comprometimento inflamatório de toda a microcirculação do corpo, levando a tromboses generalizadas. Muitos pacientes não morreram de pneumonia; eles tinham pneumonia, mas morreram foi de trombose. Rapidamente aprendemos a lidar com essa doença, que foi caracterizada em trabalhos de grande qualidade publicados por revistas científicas como a “Nature” e a “Science”, definindo-a como uma doença do endotélio, uma endotelite. Uma doença da parte interna da microcirculação, que diminui o fluxo sanguíneo e forma trombos através da liberação de citocinas inflamatórias. É por isso que tem que anticoagular, tem que controlar o fenômeno inflamatório. Hoje, a grande perspectiva terapêutica, que é real, é a utilização dos novos antivirais para o tratamento da grande maioria dos casos, que são moderados, na fase inicial da doença. E, em pacientes mais graves, a utilização dos imunomoduladores , que já estão inclusive aprovados pela Anvisa, e que são, realmente, a salvação da lavoura.”
O risco para obesos
“Além dos idosos e dos portadores de doenças cardiovasculares, quem sofre muito com a covid-19 são os obesos. O Brasil, como os EUA, tem uma taxa de obesos bastante considerável. A obesidade, por si só, já é considerada uma doença inflamatória. No caso da covid-19, ser obeso complica o quadro. Não é que os obesos tenham mais possibilidade de pegar a covid-19, o problema é que, se pegarem a doença, eles têm mais chances de sofrer complicações. Acontece o mesmo com pacientes portadores de hipertensão arterial grave e diabetes grave. Mas os infectados de idade avançada, os portadores de doenças cardiovasculares graves e os obesos são os mais impactados.”
A nova onda e as variantes
“Numa epidemia como a covid-19, temos que esperar que ondas novas aconteçam. Na Europa, o levantamento de restrições meio sem critérios foi responsável pela onda atual. Está chegando o inverno, todo mundo fica mais confinado em ambientes fechados, sem máscaras e com uma taxa de não-vacinação bastante considerável. Por exemplo, Alemanha e França ainda estão com um terço da população sem vacinar, por diversas razões. Lá, o movimento antivacina existe, é fato. Aqui no Brasil, ele é praticamente irrelevante, apesar do discurso oficial contra a vacina, que foi muito ruim. De todo modo, essa nova onda na Europa, que era esperada, nos preocupa muito. Porque o que permite o aparecimento de novas variantes é a circulação comunitária maior. Por isso, esperamos que, sim, surjam novos surtos epidêmicos entre os grupos que chamamos de suscetíveis, ou seja, os não-vacinados que estão circulando no meio dos vacinados. Leva esse nome porque esse grupo fica mais suscetível ao Sars-CoV-2 – os não-vacinados são presas mais fáceis do vírus e provocam o aumento da circulação comunitária, favorecendo o aparecimento de novas variantes.”
O risco do Brasil
“O Brasil tem uma malha aérea enorme, muito grande mesmo. Isso já foi visto desde que tivemos o vírus de gripe H1N1. Eu participei do grupo de H1N1 do Ministério da Saúde na época, a gente chegou a ter aulas com engenheiros de aviação para entender como se dava a transmissão e como faríamos isolamento de passageiros com casos suspeitos ou confirmados. Vimos que uma epidemia que surge no Hemisfério Norte pode chegar aqui no Brasil em menos de uma semana – e vice-versa. Lembrando que o Brasil tem um celeiro de coronavírus enorme que é a Amazônia. Do jeito que a gente está tratando a Amazônia, não me surpreenderia se tivesse uma nova epidemia surgindo por lá. É só pensar por que o Brasil tem febre amarela urbana… A febre amarela é uma doença da mata, mas, então, por que tivemos febre amarela urbana? Porque tiramos as franjas de florestas em volta das cidades…”
Lavar as mãos e o termômetro
“Usar termômetro para medir a temperatura das pessoas na porta de um shopping ou de um supermercado é besteira, uma bobagem, nunca serviu para nada! Só tem uma pessoa mais radical contra o termômetro do que eu, que é o Drauzio Varella, que disse que isso é ‘uma tolice completa’. Não seve para nada, porque a distância que se toma a temperatura não é adequada e a precisão dessa informação é mínima – ou seja, é mais uma performance sem utilidade prática. Lavar as mãos, sim, é um hábito higiênico importante, que infelizmente nós não temos muito. O brasileiro toma banho mas não lava as mãos, não é mesmo? Vai ao banheiro e não lava as mãos – isso é um escândalo, é tudo muito sujo! Lavar as mãos é um hábito que independe da pandemia da covid-19. Espero que, agora, as pessoas aprendam de uma vez por todas que têm que lavar as mãos o tempo todo.”
Vacinas e testes
“Não existe vacina melhor. Todas as vacinas que usamos no Brasil são muito boas e são capazes de produzir anticorpos neutralizantes por um tempo que ainda não sabemos precisar. Por isso, as doses de reforço são tão importantes. O que nós recomendamos é que haja um intervalo da dose de reforço (terceira dose) de pelo menos 90 dias depois da segunda aplicação – a não ser que a pessoa seja portadora de doença autoimune; nesse caso, o intervalo cai para quatro semanas. Além disso, as crianças já podem e devem ser vacinadas, inclusive com doses de reforço. Mas somente a partir dos 5 anos, porque ainda não há testes com a vacina nas crianças abaixo dessa idade. O processo de vacinação é muito dinâmico, os estudos de fase 4 (que é quando a vacina já está no mercado, sendo amplamente aplicada) estão sendo feitos agora. Por exemplo, em populações controladas no Reino Unido, um ano depois da primeira dose, os testes revelaram que a AstraZeneca ainda está produzindo uma ótima quantidade de anticorpos neutralizantes, até mesmo superior à da Pfizer. Mas esses estudos são muito dinâmicos, não são conclusivos. Porém, independentemente do tipo de vacina, o prognóstico que fazemos, no momento, é de que, muito provavelmente, teremos que tomar uma quarta dose, e aí a vacinação poderá terminar. Entretanto, isso é o que conseguimos ver neste momento, pode ser que em três meses surja alguma informação nova. Quanto aos testes, eles evoluíram muito e melhoraram de rendimento. A recomendação que fazemos é de que os testes estejam muito disponíveis. Qualquer pessoa sintomática ou suspeita, ou que tenha tido contato com alguém com covid-19, tem que ter um teste disponível rápido para fazer. Quanto mais rápido você tiver diagnóstico, melhor. Quando tivermos os remédios antivirais aprovados, eles só terão valor de uso se forem usados nos primeiros quatro dias do contágio. Por isso, é preciso diagnóstico rápido.”
As sequelas da covid-19
“A Síndrome de Covid Longa (ou Pós-Covid) eu hoje considero o maior desafio da Medicina. Exige serviços de reabilitação muito complexos e multidisciplinares, porque as sequelas não são apenas respiratórias, mas até mesmo psíquicas. Há uma enorme quantidade de trabalhos publicados sobre as consequências a médio e longo prazos da covid-19 em termos psiquiátricos. Além disso, sabemos que 58% dos pacientes saem da doença com um quadro de fadiga crônica, o que torna a reincorporação a uma vida de normalidade bastante complexa. A Covid Longa exige a formação de serviços muito bem montados, com médicos de diversas especialidades, como cardiologistas, pneumologistas, psiquiatras, fisioterapeutas motores e respiratórios e neurologistas, entre outros. Há muitas sequelas neurológicas, vasculares e cardíacas, há pacientes que fazem necroses de extremidade tardiamente. A reabilitação dessas milhares de pessoas que precisam ser reincorporadas à vida normal é bastante difícil.”
A infecção, o medo e as cicatrizes
“Quando tive covid-19, nós não sabíamos tanto quanto sabemos hoje. Meus colegas ficaram muito preocupados. Não tive uma forma grave da doença, não fiquei internada em CTI. Também não precisei usar o oxigênio, porque consegui controlar a situação – sendo médica, é mais fácil. Tive uma forma moderada, mas fiquei muito ruim. Costumo dizer que a gente sai dessa pandemia com mais cicatriz do que pele, porque perdemos muita gente, muitos pacientes. Eu perdi três colegas de turma, foi muito triste. Minha irmã querida ficou gravíssima, internada em CTI, em março deste ano. Felizmente, agora ela está bem. Todos nós tivemos medo e ainda temos. Aprendemos muito a respeitar essa doença.”