No dia da prisão dos mandantes do assassinato no Brasil, peça sobre primeiro político assumidamente gay eleito nos EUA faz uma ponte sobre violência política nos dois países
Por Edu Carvalho, compartilhado de Projeto Colabora
Uma ponte de 40 anos separa dois políticos ativistas, que se opuseram às regras em prol do que lutavam: Marielle Franco, cria da Maré, assassinada em 14 de março de 2018, e Harvey Milk, norte-americano que foi brutalmente morto em 27 de novembro de 1978.
Suas vidas se cruzaram para mim no último domingo, 24, quando o Brasil ficou em estado de choque, alívio e tristeza após a prisão dos suspeitos de mandar matar a vereadora há seis anos. Um crime que se aguardava ansiosa elucidação, mas que parecia distante pela omissão do Estado.
Dos três envolvidos, um conselheiro do Tribunal de Contas, um político e, por último e não menos importante, um delegado que foi chefe da Polícia Civil. A barbárie em cadeia, fazendo todos ficarem boquiabertos. Ele já havia abraçado a família e, por vezes, ressaltava sua relação com Marielle.
Digerir tudo isso em poucas horas não seria fácil para quem viveu mais de 2.160 dias na busca por respostas que serviriam para o Rio de Janeiro e também para o Brasil mostrar a todos que episódios como esse não devem acontecer – na real, não deveriam.
Para quem viveu próximo a Marielle, foi como um soco no estômago. Se o 14 de março do passado era uma chaga, o 24 de março retoma uma sensação de impotência. Não, Marielle não venceu, não chegou onde deveria. Nos perdemos. Ela está morta. E, com ela, a certificação de que não há paz quando se existe um conluio entre entes do Poder para fazer o que bem entendem, sem pensar que serão responsabilizados.
Com Mari, morre também as possibilidades em suas própria vida. Era filha, mãe, mulher. Era, antes de um ser político, uma cidadã. Características que explicitam momentos pessoais que ela e os seus não terão mais.
Para abraçar-me no luto de um domingo que, por coincidência, também chovia, tal qual o de sua morte, procurei afago nas poltronas do teatro. Em “Eu não sou Harvey”, que tem como últimos dias em cartaz este fim de semana, um petardo. Durante 50 minutos, o ator Ed Moraes encarna o primeiro político assumidamente gay dos EUA a ser eleito, um agente transformador e ícone mundial do movimento LGBTQIA+, com direito apenas de 11 meses de mandato.
“Essa era a ponte que ligava São Francisco de 1970 ao Brasil atual e seu ranking mundial de assassinato à comunidade LGBTQIA+. Não dá pra ver nosso país alcançando esse posto e não fazer nada pra tentar refletir e problematizar sobre isso. Foi então que, anos depois, os caminhos me levaram até Michelle Ferreira (autora da peça), que já tinha escrito outra peça sobre homofobia, Tem alguém que nos odeia”, explicou Moraes em uma entrevista para Adriana Balsanelli.
No palco, vários símbolos e dinâmicas ajudam a contar os paralelos entre a figura do ativista norte-americano, a realidade brasileira e os processos históricos que levam a humanidade a cometer atrocidades como a da morte de Harvey e também de Marielle.
Num domingo que parece não ter acabado para nenhum de nós, já que as mesmas características de ambos definem uma vida muita curta no Brasil – em maior quantidade – e nos Estados Unidos.
Não deveria ser assim.