Marilene Felinto, contundente, atinge os calhordas da supremacia branca

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Marilene Felinto, escritora e tradutora, autora de “As Mulheres de Tijucopapo”. Mantém o site marilenefelinto.com.br

Passaporte português

 

Não quero ser lida por supremacistas brancos que defendem Monteiro Lobato.
O Dia Internacional da Mulher é nesta segunda (8). Nada a comemorar. Soube recentemente que um conhecido meu ganha dez vezes mais do que eu para fazer coisa semelhante: juntar palavras em textos, arranjando pensamentos, ideias, análises, essas coisas. Ele é branco, carrega um pênis entre as pernas, tem algum sobrenome e é amigo íntimo de gente de dinheiro.
Ele recebe dez vezes mais! E não é que escreva melhor do que eu. Não acho. É pau a pau comigo, se eu não for melhor até, em algum ponto. Sinceramente. Dez vezes é demais. Se fosse duas vezes, três, ainda vá. Mas, dez, já não é nem humilhação, é opressão extrema, condenação eterna.
Eterna porque as mulheres da minha geração (as pobres, não brancas, sem herança a receber) já não têm tempo (nem energia) para lutar pela alteração desse sistema infame.
O “sistema” é esse estado de coisas em que a supremacia branca continua no comando de tudo. Para todo lado é branco e branca dominando o dinheiro, o governo, a propriedade, a empresa, o cargo alto, o salário exorbitante.
E quando se abre a boca para uma crítica ao sistema da supremacia branca —por exemplo, diga que o escritor Monteiro Lobato era um fazendeiro paulista racista descarado—, eles se zangam, te expõem, cansam, te deixam no vácuo.
Mas como acontece de eu estar acostumada a fazer do vácuo aceleração, arriscada ultrapassagem na corrida da vida, sigo. Não sou dessas pessoas que se deprimem (e às quais até invejo de certo modo). Infelizmente, sou uma pessoa centrada: não fumo, não bebo, não uso drogas (por medo de me perder). E tento resolver a angústia com estas armas inúteis de papel e tinta, como já disse Graciliano Ramos.
Tanta injustiça, tanta desigualdade incitam a vontade de ir embora daqui. Muita gente está indo. Fugindo do deserto de perspectivas, do sistema macho, do feminicídio, do privilégio branco, da sacanagem institucionalizada.
Mas eis que minha condição é de miscigenada que desconhece sua ascendência branca e, portanto, não posso ter nem mesmo um passaporte português, em moda agora no Brasil. Devo ser resultado provável dos estupros praticados pelos senhores de escravos contra as africanas na escuridão da senzala e do tempo.
Está muito em voga hoje requerer a nacionalidade portuguesa, os filhos, os netos documentados dos colonizadores. Eles imploram para serem, por favor, recolonizados, agora no território “globalizado” da metrópole.
Querem o passaporte não para passar por portugueses exatamente, mas por europeus (o sonho de ser cidadão da União Europeia), para olharem aliviados, de lá de cima no mapa, para esse criadouro de gente que brota da lama aqui embaixo.
E não se pode condenar essas pessoas, menos ainda numa época como esta, em que o Brasil é açoitado por um bando de jagunços sanguinários no poder. Somado ao núcleo de banqueiros e especuladores socialmente irresponsáveis. Vergonha diante do resto do mundo, vexame.
Só que quando os brasucas neonacionalizados abrirem a boca lá fora, com seu sotaque de novela da TV Globo, serão ridicularizados nas ruas de Lisboa. Serão tratados com desdém em Madri quando se expressarem em seu portunhol irritante para os espanhóis. Seja qual for a raça dos brasucas, serão discriminados como terceiro-mundistas desprezíveis, cafonas e desajustados.
Se tiverem muito dinheiro, a coisa melhora, compram um tanto a mais de cidadania gringa, escondem a nacionalidade brasuca-portuguesa. E podem até mesmo passar por romenos, búlgaros, poloneses, esse povos vistos como de segunda classe pelo próprio velho continente.
O Dia Internacional da Mulher é 8 de março, mas para mulheres pequenas como eu, nada a comemorar —sou apenas uma microempresa de subsistência, uma microvida, no sistema machista de um país de homens grosseiros, misóginos, feminicidas.
Ora, mas o que tem a ver o Dia da Mulher com um passaporte português? Não sei, associação de ideias vagas, uma dose de revolta por não se poder nem mesmo criticar o sistema.
Acham que você fala demais. Querem te calar, te enquadrar, te encaixar em uma gaveta cômoda para eles (o sistema). No meu caso, nunca admiti. Não sou de gavetas de cômodas nem de guarda-roupas.
Sou de fora, de lugar nenhum, da lama, nem isso nem aquilo.
Não quero ser lida por supremacistas brancos. Queria ser lida pelo “povo-massa”, em expressão de Darcy Ribeiro, povo oprimido, tratado como escravaria, que produz o que não consome, e só se exerce culturalmente como uma marginália.
Não quero ser lida por supremacistas brancos que defendem Monteiro Lobato. Nem quero ser redocumentada pelo colonizador branco escravista. Me errem. Me esqueçam.

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