Por Por Marilene Felinto, publicado no Viomundo
E rompi com aquela gente. E prefiro hoje morrer de fome a ter que escrever uma linha que seja de autoria minha pra essa mídia golpista. Chico, certamente hoje você é uma pessoa melhor do que ontem. Transcrevo aqui o texto da “coluna” que foi o estopim do meu pedido de demissão naquela época
Carta a Chico Sá
Ou carta à presidenta Dilma Rousseff
Pelo contrário, Chico. Mancha o nome da pessoa. Agora que você se demitiu desse jornal, por não poder expor sua opção política pela candidatura Dilma, vamos conversar.
Aconteceu comigo também em 2002, quando da primeira eleição do Lula à presidência.
Quanto tempo faz? Eu também era o que se chamava de “colunista” de opinião do caderno Cotidiano.
Quanto tempo faz? Mas, veja: a história não se repete agora nem como tragédia nem como farsa. A história se repete como descaramento, como safadeza mesmo, hipocrisia dessa mídia golpista.
Aconteceu também, há poucos anos, com Maria Rita Kehl, não foi? Se não me engano, no jornal O Estado de S. Paulo.
Os dois “veículos de comunicação” pactuam de novo o complô censor e golpista. Lá no meu caso, em 2002, a coisa teve menos repercussão porque, afinal, não sou tão importante quanto você e Maria Rita.
Além do que, você também é da TV, não? Um cara pop. Aparece muito mais, e tal. E Rita é uma personalidade intelectual do mais alto nível (além de loira, o que, já de cara, dá muito mais repercussão aqui no Sudeste racista!).
Olha, eu até queria que essa carta tivesse um pouco de repercussão (queria que chegasse na presidenta!). Mas vai ser mínima, cara.
Talvez circule um pouco pelas redes sociais, minimamente, porque eu não me publico mais nem me divulgo.
Então, não tenho repercussão nenhuma! E, agora, que não temos mais, nem você nem eu, a tribuna de um jornal tipo FSP, imagine, quem vai ler essa carta? (Gargalhe!). Kkkkkkkkkkkkk!
Quem se importa, afinal, com essa “mer…” dessa Folha de S. Paulo? Quem precisa dessa “bos…” pra escrever ou publicar algo?
Peço desculpas pelos palavrões, mas eu não aguento não.
Como jornalismo é um mundo baixo, do qual me lembro com enjoo ainda hoje, evoca palavrões na minha fala.
Cara, nem sei porque escrevo pra você essa carta, se mal nos conhecemos. Falei com você umas três vezes na vida, talvez.
E isso não é uma carta de solidariedade, não. Ninguém precisa de solidariedade porque deixou de escrever nesse jornal.
Escrevo talvez porque me deu uma enorme vontade de gargalhar quando soube que o caso se passa agora também com você. Gargalhar por causa da importância que ainda se dá a esse jornal e a outros, e à Rede Globo e às redes todas da mídia golpista.
Cara, é muita gente querendo ainda escrever na Folha, aparecer na Folha, no Globo, na Globo, na pqp!
É de intelectual a artista e político! É de secretário de governo a ministro, a prefeito e a assessor disso e daquilo!
É por essas e outras que essa cambada de golpistas age como se fossem eles os donos do mundo, impunes que se sentem, protegidos pelo interesse econômico que representam!
Chamei esse texto aqui de “ou carta à presidenta Dilma” porque minha vontade era fazer chegar à presidenta um recado torto, e ao Lula também: gente, entendam de uma vez por todas que é preciso regular essa mídia brasileira!
Que já demorou demais, que é pura covardia não peitar essa cambada de irresponsáveis. Demorou, presidenta! Presidenta Dilma Rousseff, é preciso garantir as liberdades comunicativas no país, é preciso pluralismo, democratização da mídia, liberdade de expressão!
São 12 anos de acovardamento do PT! E eu sou petista, sim, desde sempre, desde então.
Lula e você, Dilma, são ídolos meus! E olha que eu quase não tenho ídolos! Só Graciliano Ramos depois de vocês! Ou antes, melhor dizendo!
Chico. Escrever pra Folha de São Paulo não enobrece ninguém. Não traz renome. Pelo contrário: a pessoa chafurda ali na lama daquelas vaidades, das pequenas trapaças, das intrigas internas, das grandes e perigosas manipulações da informação.
Aquilo é um mundo baixo, do qual me lembro com enjoo ainda hoje.
E carrego pecha ainda maior: de ter sido amiga do dono, um erro de cálculo provocado pela cegueira e pela vaidade da juventude.
Sempre fui péssima nas matemáticas da vida. Sempre só soube direito português, que não serve pra nada, afinal.
Chico. Em 2001, me chamaram por telefone lá daquele jornal, para dizer também que eu tinha feito “proselitismo político” pró Lula, e que o jornal, neutro (Gargalhe! Que fazia campanha aberta pro Serra), não aceitava aquilo. Gargalhemos novamente. E que, portanto, tudo o que eu escrevesse dali por diante passaria, antes de ser publicado, pelo escrutínio da “direção de redação”.
E que, além disso, meu texto sairia apenas de 15 em 15 dias e não mais semanalmente como era. E que, portanto, meu salário também seria cortado pela metade!
Fiquei pasma! Pela ousadia da tal “direção de redação” chegar para uma pessoa e dizer uma barbárie dessa! E impor uma censura assim, descaradamente, presidenta! Censura é isto!
Cadê a liberdade de expressão que eles exigem da senhora? Arrumei a trouxa e fui-me embora daquela “mer…”, com perdão da palavra.
Do lado de lá, a “direção de redação” também pasmou quando percebeu que eu, de fato, decidira largar aquilo de uma vez por todas depois de 12 anos!
Devem ter achado que eu, por ser negra e pobre, dependente daqueles honorários de “mer…” que me pagavam, cederia a tamanha humilhação!
Tentaram reverter, tentaram me convencer a ficar, dizendo que voltavam atrás nas condições, nos salários, talvez na “p…” da censura.
Não cedi não. E rompi com aquela gente. E prefiro hoje morrer de fome a ter que escrever uma linha que seja de autoria minha pra essa mídia golpista.
Chico, certamente hoje você é uma pessoa melhor do que ontem. Transcrevo aqui o texto da “coluna” que foi o estopim do meu pedido de demissão naquela época (com o Lula já eleito, ao menos isso, graças a Deus, que eles não engolem até hoje!).
Dedico de novo o texto ao ex-presidente Lula, a minha candidata à reeleição, Dilma Rousseff, e… a um terceiro ídolo, que eu lembrei que tenho: Marilena Chaui.
A você, agradeço a oportunidade de tocar no assunto, com palavrão e tudo, como eu queria. Um abraço.
(*) Marilene Felinto, 56, é escritora e tradutora, autora do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982), pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Revelação de Autor, entre outros livros. Trabalhou na imprensa de 1989 a 2006, na Folha de S. Paulo, Revista Caros Amigos, entre outras publicações.
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É proibido comemorar
Marilene Felinto
[Texto escrito em 29/10/2002, quando da primeira eleição do Lula à presidência da República. Publicado na Folha de S. Paulo]
É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: por minha tia Irene, pelo menos, que também perdeu parte de um dedo na máquina da fábrica de tecidos em Paulista (Grande Recife), nos anos 50. Paulista, Caetés, Buíque, está tudo ali, naquelas vilas perdidas do interior do país, onde tudo foi sempre seco, matuto, duro e difícil. Buíque (PE), vilarejo muito perto de Caetés (onde nasceu o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva), é onde o escritor Graciliano Ramos passou parte de sua infância, ele que nasceu em 1892 em Quebrangulo (Alagoas), no mesmo 27 de outubro que Lula.
E ele, Graciliano, que escreveu um romance chamado “Caetés” (1933) e outro chamado “São Bernardo” (1934), nome da cidade São Bernardo do Campo, onde o operário virou líder sindical. Está tudo ali. Está tudo aí, fazendo história universal, quase irreal, quase fictícia de tão surpreendente.
É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: comemorar não uma pessoa, mas uma idéia, um símbolo. O povo elegeu sua própria cara mais profunda pela primeira vez. Isso é bom para a auto-estima do povo. Quem já experimentou o preconceito sabe — a discriminação por origem social, tão típica da estrutura da sociedade brasileira. É mais do que saudável que o poder mude de mãos: especialmente num país sempre dominado por uma elite sem nenhuma simpatia humana, de uma perversidade e de um egoísmo sem par no mundo.
É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: ao menos pela menina “Te”, de quatro anos de idade, que conheci num casebre de taipa em Cruzeiro do Nordeste (município de Sertânia, a 350 km de Recife) em 2001. “Te” era o apelido dela que não tinha nome ainda, não tinha certidão de nascimento, não tinha nacionalidade, não tinha país, não existia para o Brasil e seu censo. Não merecia nenhuma simpatia humana da parte desses governantes insensíveis, eruditos urbanos empertigados ou usineiros exploradores.
“Te” estava doente, eu acho. Não parava de chorar quando a conheci, a não-sei-que-nascimento na fila de uma carrada de sete filhos de um casal analfabeto, que passava o mês todo com os R$ 80 que o chefe da família então ganhava carregando estrume para fazendeiros da região. “Te” era apenas esse monossílabo, seminua, suja, talvez faminta chorando no meio da casa.
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU: “Artigo 21 — 1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.”
É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: por um raio de esperança ao menos para essas tragédias nordestinas, a de “Te”, a de Lula, a de Irene (que morreu alcoólatra e empregada doméstica a um salário mínimo mensal), a minha mesma. Se eu fosse dez anos mais velha, talvez tivesse vindo para São Paulo sacolejando na mesma boléia de um pau-de-arara. Vim 15 anos depois de Lula, mas de ônibus, da viação São Geraldo ou Itapemirim, não me lembro. Tive mais sorte, vim na poltrona já estofada do ônibus, numa viagem que durou quatro dias, ao invés de 13. Tive mais sorte, fiz curso superior.
É proibido comemorar porque jornalistas não comemoram, criticam. Mas cada coisa a seu tempo. Não faltarão críticas. Mais do que isso: há fascistas e neo-fascistas à espreita país afora. Farão de tudo para aterrorizar e destruir.
No momento, comemoro, faço do português o inglês (para o mundo entender) que me ensinaram por sorte na universidade — e digo como a atriz Marilyn Monroe disse ao presidente Kennedy, num dia de aniversário: “Happy birthday, Mr. President!”, pelos mais de 50 milhões de votos.